Dante uma vez fez um inferno com a poesia, e eu escrevo sobre o inferno que é a vida real de nossa época - a afirmação é do escritor francês, Victor Hugo (1802-85), um gigante da criação literária universal. Expressado principalmente em "Os Miseráveis", o inferno exposto por Hugo é a desigualdade social de 150 anos atrás, mas cuja dolorosa realidade ainda está presente em nosso tempo.
A obra de Hugo, que passou a correr o mundo no terceiro dia de abril de 1862, só tem paralelo na exposição da miséria e da pobreza espiritual em duas outras obras-primas da literatura: a crítica à exploração do homem pelo homem, em "Germinal" (1885), de Emile Zolá; e nas dolorosas criações de Charles Dickens (1812-70) caso de "Oliver Twist" (1839) e "David Copperfield" (1850).
"Germinal" ganhou uma contundente adaptação cinematográfica em 1993, pelo francês Claude Berri, com Gerard Depadieu. "David Copperfield" tem a sua mais fiel adaptação datada de 1935, sob a direção de George Cukor, enquanto "Oliver Twist" pode ser conferido nas versões do inglês David Lean (1948) e do polonês Roman Polanski (2005).
A relação de "Os Miseráveis" com o cinema foi muito diferente. A atual verão, dirigida pelo inglês Tom Hooper (de "O Discurso do rei"), é a 52ª adaptação cinematográfica. Ela tem por base o musical de Claude-Michel Schönberg, com libreto de Alain Boublil e letras de Herbert Kretzmer, originado do teatro francês em 1980 e que, a partir de 1985, foi conquistando as plateias do mundo. Passou por 42 países e foi vertido para 21 idiomas, já tendo sido conferido por mais de 60 milhões de pessoas. Está há 28 anos em cartaz.
"Os Miseráveis" conquistou três estatuetas no Oscar de 2013, incluindo a de melhor atriz coadjuvante, para Anne Hathaway, intérprete de Fantine. O filme custou US$ 61 milhões e já arrecadou US$ 146,7 milhões, nas bilheterias dos EUA, e US$ 248,2, no mercado em internacional.
Apesar de todo esse sucesso, do musical e do filme, é preciso fazer uma distinção em relação ao público, pois o longa-metragem se destina a uma plateia mais esclarecida e de maior proximidade com as artes. Com toda a certeza, "Os Miseráveis" agrada mais àqueles que gostam de musical. Basicamente, a narrativa segue a mesma estrutura de outro musical francês, o belíssimo "Os Guarda-Chuvas do Amor" (Les Parapluis de Cherbourg, 1964), de Jacques Demy, o primeiro a ser inteiramente cantado.
Distinções
A diferença entre a obra magistral de Demy e a criação extraordinária de Hooper reside na estrutura dramática. O filme de Demy é romântico, exacerbadamente romântico. A obra de Hooper é dramática, contundentemente dramática. Assim como Demy notabilizou a sua criação ao musicar todos os diálogos, Hooper dá grandeza ao seu filme ao fazer os atores cantarem de verdade, ao vivo, em cena.
Passadas tais observações, resta estabelecer que Hooper fez uma obra tão visceral quanto o original literário em termos de exposição da miséria na sociedade francesa pós revolução de 1789. À época, um vácuo político se seguiu ao Antigo regime e o movimento histórico no sentido de suplantá-lo foi marcado pelo caos, pela violência e por uma sequência de reviravoltas políticas
"Os Miseráveis" é uma das mais notáveis adaptações que o cinema fez já fez a partir de uma obra literária (ainda que ele tenha uma dívida grande com a adaptação anterior, feiat para os palcos). William Nicholson, com a colaboração dos autores da adaptação para o teatro - Boublil, Schïnberg e Kretzmer -, estruturou uma narrativa linear na qual Hooper estabelece as imagens através de diversas artes - na tela, expressam a ópera, a fotografia, a música, a pintura, a dança. A História se desenvolvendo na tela.
A temática em questão, a miséria social e a pobreza de espírito de uma época, expõe uma sociedade ainda com o pensamento medievo da pobreza como determinação divina, sentido esse que a própria obra de Hugo tratou de jogar no lixo da História, tal o seu impacto social. Poucos filmes conseguiram dar abordagem tão dura e comovente da pobreza de caráter, a inconsciência e a mesquinhez humana.
Filosofia
De forma brilhante "Os Miseráveis" trata do sofrimento humano pela injustiça em três camadas: filosófico, espiritual e existencial. Observe que o sofrimento maior não é de Jean Valjean (Hugh Jackman), mas do inescrupuloso casal Thernadier (Sacha Baron Cohen e Helena Bonham Carter), que expressa a mesquinhez e a ganância e cuja dedicação à criminalidade torna-os infelizes (não existe amor entre eles), e, maior ainda, de Javert (Russell Crowe), que atua politicamente como a figura intervencionista do estado na sociedade.
A dor de Javert é intensa e profunda. Martela, intermitentemente, sua consciência pela não distinção das diferenças humanas e a falta de sentido que ele mesmo concedeu à existência. O personagem é derrotado por sua animalesca devoção à lei, de forma que chega à condição de apenas ser aplacada com o descalabro do suicídio. Já Eponine (Samantha Banks) sofre o mal do amor platônico.
"Os Miseráveis" trafega pela filosofia, história e religião. Pela filosofia, ao expor um tempo em que os pensadores introduziam as suas ideias na sociedade e o liberalismo e positivismo avançavam em uma Europa em transformação histórica, pela primeira revolução industrial que saia do Reino Unido, para estabelecer novas regras econômicas e trabalhistas no mundo à luz das descobertas da ciência.
Espiritualidade
No quesito da religião, o filme surpreende ao valorizar a visão espiritualista da existência da vida após a morte física, a qual Victor Hugo abraçou a partir de 1853 quando de seu contato com médiuns durante o seu exílio na Ilha de Jersey e a impregnou em suas obras. Naquele ano, uma década após a morte de sua filha Leopoldina, o contato mediúnico com ela transformou a sua visão da existência e da morte.
É uma ousadia por parte de Nicholson, também, ao impregnar "Os Miseráveis" de uma visceral religiosidade.
Tom Hooper faz, em "Os Miseráveis", uma exposição de como os jovens e as mulheres determinados pela consciência política promovem as mudanças sociais, fazendo a evolução da história e da civilização. A história requer mudanças pelas guerras, sacrifico e muito sangue. O sofrimento marca a existência humana.
Esse painel se expande também através das canções que perfazem a narrativa de ponta a ponta, cujas maiores expressões estão em "I Dreamed a Dream" (redescoberta pela escocesa Susan Boyle, em 2009), "One Day More" e "On my Own", além das outras 17 músicas executadas ao longo do filme, um dos mais importantes desta década.
Mais informações:
Os Miseráveis (Les Miserables, Reino Unido/EUA, 2012), de Tom Hooper, com Hugh Jackman, Russell Crowe, Amanda Seyfried, Anne Hathaway. 158 minutos. 14 anos. Salas e horários no Zoeira.
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