Livro da historiadora Berenice Abreu refaz as odisseias de pescadores para denunciar sua precariedade social
O espírito de Jacaré, diz Berenice Abreu, renasce em cada jangada que sai ao mar. O pescador cearense liderou a histórica viagem, em 1941, quando juntamente com os companheiros Jerônimo, Manoel Preto e Tatá saíram do litoral de Fortaleza, em direção ao Rio de Janeiro, a fim de reivindicar por direitos sociais, em pleno Estado Novo de Getúlio Vargas. No ano seguinte, foi convidado para refazer o percurso, dessa vez, para o filme "It´s all true".
A metáfora da pesquisadora, professora do curso de História da Universidade Estadual do Ceará (Uece), define bem o conceito da pesquisa que resultou no livro "Jangadeiros: uma corajosa jornada em busca de direitos no Estado Novo", cujo lançamento acontece amanhã, às 18 horas, no auditório do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC). Na obra, Berenice discute a situação social e econômica dos pescadores à época, a relação do grupo de jangadeiros com o cineasta americano Orson Welles e a morte de Jacaré em um naufrágio não longe da costa e até hoje incompreendido pela família. Tais questões serão debatidas no lançamento, que contará com mediação de Jorge Ferreira, da Universidade Federal Fluminense (UFF), autor do prefácio do livro.
Memórias
Na tentativa de relembrar a saga dos jangadeiros, a autora convidou a viúva do pescador Tatá, Dona Celsa, que mora até hoje na Rua dos Tabajaras (a antiga Praia do Peixe dos anos 1920), na Praia de Iracema, para participar do evento. Ela continua na mesma casa, atendendo a pedido do marido, que pediu para não vender o imóvel. Ela espera que seja transformado num memorial. No evento de lançamento, será apresentado o musical "O mar e os jangadeiros en(canto)", com Ricardo Ribeiro, Socorro Barreira, Mary e Marcíria Pimentel.
Esse não é o primeiro livro que Berenice Abreu escreve sobre o tema. Em 2001, lançou "Do mar ao museu: a saga da jangada São Pedro". Suas investigações não se limitam à viagem de Jacaré, fazendo referência a outras sagas, que tiveram continuidade entre as décadas de 1950 e 1990, como forma de reivindicar os direitos da categoria. "Nos anos 1930 e 1940, os pescadores já reclamavam dos altos preços do peixe, colocando a culpa nos atravessadores", revela a professora, referindo-se a um problema ainda atual.
Imprensa
Conforme Bernice Abreu, nas décadas de 1930 a 1950, a presença dos jangadeiros era constante na imprensa. "Eles iam aos jornais para denunciar ou mesmo para agradecer por uma conquista", ressalta, afirmando que, hoje, estão ausentes, mas continuam resistindo, garante. Na sua opinião, a imprensa tem se preocupado menos com a luta dos pescadores. O afastamento começa a ser notado na década de 1970, quando conseguem, finalmente, o direito à aposentadoria, através da criação de políticas de direitos sociais ao homem do campo. A pesquisadora lembra que, no afã do Estado Novo, com o discurso de exaltação em torno da classe trabalhadora, a categoria não conseguiu garntir, efetivamente, seus direitos sociais, principal motivo da viagem de Jacaré. O que o governo Vargas ofereceu, em forma de decreto, junto ao Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Marítimos, não teve efeito jurídico. Isso, eles conseguiram em plena Ditadura Militar, no governo Médici.
Precariedade
Antes disso, os pescadores não tinham rendimentos fixos, nem eram donos das próprias embarcações. Do que pescavam, metade ia para o dono do barco; e a outra, dividida entre os pescadores. Tal situação motivou odisseias com o intuito de denunciar a precariedade com que viviam. Depois de Jacaré, na década de 1950, representantes das colônias cearenses realizaram duas viagens, para Porto Alegre e Buenos Aires. Em 1973, o pescador Eremilson fez outra viagem.
A obra de Berenice Abreu ganhou Menção Honrosa, em 2008, da Associação Nacional de História (Anpuh). O livro é resultado de trabalho que começou no fim dos anos 1990, fruto de sua tese de doutorado - uma reflexão em torno da Praia de Iracema, relacionando com a atuação da Colônia de Pescadores Z-1.
A autora destaca a parte denominada "Aprendizado de classe", quando Jacaré assume a ação política da famosa viagem ao Rio, sendo saudado na Barra da Tijuca, e recebido pelo então presidente Getúlio Vargas. "Ele assumiu a luta dos pescadores do Norte", revela a autora. À época, não existia a denominação Nordeste. Na ação foram englobados pescadores da Bahia e do Rio Grande do Norte.
Além de discutir a questão nacional, lembrando que o cenário no qual se desenvolveu o fato histórico era o Estado Novo. Assim, os jangadeiros apareciam como representantes da classe trabalhadora, uma das bandeiras de Getúlio Vargas. Daí, tanto os trabalhadores quanto o governo fazerem uso de um mesmo espetáculo. Afinal, caso lhe fosse conveniente, seria fácil para Vargas reprimir as manifestações sociais. Mas o presidente fez justamente o contrário, tirando proveito político da situação, enquanto os pescadores denunciavam a miséria em que viviam imersos.
"Quando algum pescador morria, a família pedia esmola para providenciar o enterro", conta a professora. Era esse o temor do mestre Jerônimo, que com a morte de Jacaré, assume a liderança política das viagens. A última viagem feita por pescadores, com intuito de reivindicar melhores condições, aconteceu em 1993, um grupo da Prainha do Canto Verde, em Beberibe.
Lendas
O ponto de partida para as investigações da pesquisadora foi quando assistiu a uma sessão, em 1993, do filme de Orson Welles "It´s all true", seguido de debate, no qual participaram parentes dos pescadores. "Para a família, é complicada a morte de Jacaré", analisa. O pescador deixou vários filhos e coube ao mais velho, com apenas 11 anos, a responsabilidade de ajudar a cuidar dos irmãos.
Entre verdades e mentiras sobre o assunto, como a de que Jacaré não teria morrido, mas sim embarcado com o cineasta americano ou sido assassinado pela ditadura Vargas. As questões sem respostas foram sendo tecidas pelas lentes da pesquisadora que resolveu tentar unir pontos para explicar a história. Na época, estava na direção do Museu do Ceará e teve acesso ao diário de viagens dos pescadores. Antes, pensou que não fosse possível, já que a maioria dos pescadores na época era analfabeta. No entanto, Jacaré se alfabetizou com a jovem professora da Colônia Z-1, Leirice Porto, em 1939. Os jornalistas Edmar Morel e Davi Nasser reproduziram o diário em reportagem contando a viagem de Jacaré.
LIVRO
Jangadeiros: uma corajosa jornada em busca de direitos no Estado Novo
Berenice Abreu
Civilização Brasileira
2013, 322 páginas
R$ 39,90
Mais informações:
Lançamento do livro "Jangadeiros: uma corajosa jornada em busca de direitos no Estado Novo", da professora Berenice Abreu. Amanhã, às 18h, no auditório do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (R. Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema).
Contato: (85) 3488.8600
|