Entre 1908 e 1959, a Capital teve 58 desses equipamentos. Hoje, há apenas salas de projeção em shoppings
Talvez para quem tenha nascido a partir da década de 1990 seja difícil imaginar que no Centro de Fortaleza já tenha existido, além do Cine São Luiz, outro cinema de rua. Porém, a região já serviu de endereço para a maior parte dos 58 cinemas fixos de rua que existiram na Capital entre 1908 e 1959.
Somente a Praça do Ferreira chegou a ter simultaneamente quatro destes, mas, hoje, essa história gloriosa só permanece na memória e no saudosismo de quem viveu à época. A realidade do século XXI são as salas de projeções de shoppings. Dos antigos cines com mais de mil lugares, hoje o que se tem são, no máximo, 100 a 400 poltronas.
De acordo com historiadores como Christiano Câmara, 77 anos, o desaparecimento das salas de cinema de rua é um fenômeno observado nas últimas décadas em todo o mundo. O que, para ele, é uma perda imensa, pois muitas cidades construíram parte de sua identidade cultural e arquitetônica em torno destes locais. "Cinema é um prédio com arquitetura específica. O que se tem hoje em shoppings não são cinemas, mas, sim, salas de projeção. Infelizmente, vimos uma tecnologia substituir a outra e assim também, o cinema sendo substituído pelo shopping, lojas, praças, estacionamentos ou igrejas", lamenta.
A história destes lugares pomposos, de uma Fortaleza que vivenciou por décadas o esplendor das salas cinematográficas que ocuparam áreas privilegiadas na Praça do Ferreira, desde o pioneiro Cinematógrafo Di Maio ou Art-Nouveau aos que se lhe seguiram: Amerikan Kinema, Riche, Polytheama, Majestic-Palace e Moderno é contada por quem estuda o assunto, como é o caso do pesquisador Ary Bezerra Leite. "O quarteirão das ruas Major Facundo com Guilherme Rocha e Liberato Barroso poderia ser chamado de cinelândia cearense", relata.
O saudosismo é sentido não só pela velha guarda, mas também por jovens que vivem cinema. É o caso do diretor cinematográfico Pedro Diógenes, 28. "Fui muito aos Cines São Luiz, Fortaleza, Beira-Mar e Diogo. Hoje, o cinema faz parte dos shoppings, existe um perfil econômico, além de se ter uma programação limitada de filmes", critica.
Na Capital, só existe um lugar onde o cinema de rua não morreu. É o bairro São Gerardo, onde fica o Cine Nazaré. Comandado pelo aposentado Raimundo Carneiro de Araújo, 82, o cinema com cadeiras vermelhas - herdadas do antigo Cine São Luiz - abre três vezes por semana, com sessões a partir das 19h.
Com um acervo oriundo de várias doações, ele já tem mais de 300 títulos. Entre as relíquias, estão "Casa Blanca" e "E o vento levou". "Quantas sessões eu me disponha a fazer, tantas ficam lotadas. E não é só gente velha, gente jovem também".
Em 1949, seu Vavá, como é conhecido, tornou-se carregador de filme do Cine Familiar, que pertencia à Paróquia de Nossa Senhora das Dores. Ficaria na empresa até 1968, assumindo outras funções - de revisor até gerente geral. Boa parte da vida foi passada dentro de um cinema, o que lhe deu gabarito para montar cinemas em outras cidades do Ceará, como o Cine Ideal, em Juazeiro do Norte, no fim dos anos 60. Em 1970, resolveu tocar seu próprio negócio, alugando o prédio do Cine Nazaré.
Resgate
Em meio a este cenário, acontece o Projeto Cine Fantasma, sob as rédeas de entusiastas e estudiosos da sétima arte. Resignificando o espaço público e resgatando sua paixão por esses lugares, a trupe organiza andanças em seu carango - carro com um projetor abastecido de imagens igualmente nostálgicas - "assombrando" a cidade com projeções em fachadas de prédios onde funcionavam cinemas.
Em Fortaleza, a trupe desembarca hoje, às 18h, no Centro Cultural Banco do Nordeste, no Centro. As ações do Cine Fantasma começam com uma palestra com a professora do Curso de Multimídia do Nave (Núcleo Avançado em Educação - VisionLab-PUC/Rio), Paola Barreto. Às 20h, tem início a caminhada pela Praça do Ferreira.
Sobre a questão de projetos de restauração e tombamento focados especificamente no cinema, a Secretaria de Cultura de Fortaleza (Secultfor) informou por meio de nota, que a Coordenação de Patrimônio Histórico e Cultural passa por um processo de avaliação e elaboração de projetos, bem como levantamento de dados e informações.
Com relação ao Cine São Luiz, o coordenador de patrimônio histórico da Secretaria de Cultura do Estado (Secult), Otávio Menezes, informou que a licitação para restauração e criação de centro cultural do cinema deve ser lançada neste ano, porém ainda não há um projeto preciso.
1921
Cine Moderno
Começou as atividades no dia 7 de setembro de 1921, na Rua Major Facundo, 594, também na Praça do Ferreira. Tinha 709 lugares disponíveis e era mantido pela empresa Luiz Severiano Ribeiro. Fechou as portas em 21 de maio de 1968
1958
Cine São Luiz
Começou as atividades no dia 26 de março de 1958, com a exibição do filme "Anastácia, a princesa esquecida", na Praça do Ferreira. Foi comprado por R$ 2,2 milhões pelo governo do Estado, mas ainda não tem destino certo
1917
Cine-Theatro Majestic-Palace
O dia 14 de julho de 1917 marcou a inauguração de seu palco, na Praça do Ferreira. Já a tela passou a funcionar em 20 de julho de 1920. Tinha 1.088 lugares. Encerrou as atividades no dia 1/1/ 1968, após incêndio
1940
Cine Diogo
Inaugurado no dia 7 de setembro de 1940, tinha capacidade para 995 pessoas. Funcionava na Rua Barão do Rio Branco, 1006, onde, hoje, funciona o Shopping Diogo, com estabelecimentos comerciais. Fechou as portas no dia 30 de janeiro de 1997
1974
Cine Fortaleza
Inaugurado em 11 de agosto de 1974, foi o primeiro cinema de lançamento no sistema em que o filme entrava em cartaz e só sairia quando não tivesse mais público. O filme de estreia foi "Ritmo Quente", que passou 189 dias em cartaz, ou seja, sete meses Foto: Acervo do Nirez
OPINIÃO DO ESPECIALISTA
Um ritual inesquecível
Até a década de 1980, ir ao cinema representava um ritual, com os frequentadores vestindo suas melhores roupas, até porque cinemas como São Luiz e Diogo exigiam paletó. Havia uma espécie de comunhão mágica entre o público, para a qual contribuíam a imponência das salas exibidoras.
Com a progressiva deterioração do Centro, vieram também a falta de segurança, a dificuldade de locomoção em calçadas tomadas por vendedores ambulantes e a falta de estacionamento. As seguras e confortáveis salas dos shoppings fizeram desaparecer o tradicional cinema de rua, embora sem apresentarem a diversidade sofisticada de anteriormente.
A partir daí, esvaneceu-se a magia do ritual do passado, quando ir ao cinema era quase um ato de amor à Sétima Arte. Hoje, a não ser entre cinéfilos mais renitentes, assistir a um filme é quase apenas um complemento trivial às tardes de compras ou mero passatempo. A promoção "Cinema Fantasma" faz oportuno resgate de uma época que marcou, social e culturalmente, o imaginário de várias gerações. E faz recrudescer dúvidas que persistem: qual destino será dado ao Cine São Luiz, ora de propriedade do governo do Estado, e quando será decidida de vez a execução de seu tão propalado projeto de recuperação?
JOSÉ AUGUSTO LOPES
JORNALISTA E CINÉFILO
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