Capital celebra 287 anos, e museus comunitários fazem intercâmbios para lembrar identidades
Quantas cidades cabem em uma só? Milhares, em cada rua, esquina. São famílias, registros, relatos, tantos Josés e Marias que compõem toda poética deste local, que aparenta ser tão moderno, novo. Na semana em que Fortaleza comemora 287 anos de fundação, catalogamos diversas experiências que tentam manter vivas as memórias e identidades múltiplas, como os museus comunitários nos bairros. A mesma cidade que hoje derruba casarões é a que tenta trazer à tona o passado, fotos e causos.
Quando o dinamismo urbano e a velocidade das informações torna tudo caduco, essa é a hora de olhar para trás, guardar cada década a fim de não se perder no futuro, sem raiz. Nesta Fortaleza de mudanças, rupturas e novas construções, diversos agentes seguem hoje preocupados com o velho, como guardá-lo.
Daí, a existência de projetos como o Memória Viva do Pirambu (que mantem hoje um vasto memorial sobre o bairro); Museu Comunitário do Grande Bom Jardim e também o Centro de Cultura do bairro Antônio Bezerra, a Associação André Carnaúba (Pseudônimo de Antônio Bezerra na Padaria Espiritual).
Pirambu
Bairro com mais de 100 anos de ocupação, o Pirambu tem areias conhecidas por serem espaços de resistência. Hoje, funcionam diversos Pontos de Memória, entre eles, Centro Popular de Pesquisa e Documentação do Bairro (CPDOC), Casa da Cultura, o Projeto Memória Viva e outras dezenas de acervos fotográficos em associações de bairros.
Para o fotógrafo Edmar Oliveira Júnior, um dos diretores do Instituto Lamparina, mais do que nunca, o Pirambu (e a cidade) precisa guardar suas memórias e paisagens. Em 50 anos, o bairro sofreu, segundo ele, sua maior intervenção, Vila do Mar.
"A comunidade tem esse sentimento de identidade muito forte até hoje. Desde a sua fundação, retirantes trouxeram isso, uma bagagem de vida, são pescadores, agricultores e artesãos que hoje formaram a cara do bairro". Ele lembra um marco da comunidade, por exemplo: a Marcha do Pirambu por moradia em 1962. "Todos esses fatos importantes revelam o que somos hoje" diz.
E para tentar fortalecer essas memórias comunitárias, o Instituto Lamparina realizou, no fim de semana, um intercâmbio com moradores do Antônio Bezerra para a criação de um Ponto de Memória na comunidade.
"Queremos trazer à tona essa memória das periferias. Que a nossa cidade não seja vista apenas pelo olhar do Centro. Existem mil cidades em uma só, cada bairro tem algo a dizer, registros múltiplos", afirma Elizeu de Sousa, coordenador do Instituto.
A ideia de formação de um memorial animou o presidente da Associação André Carnaúba, Rogério Ribeiro. "Nós queremos criar um memorial. Fazer com que a comunidade se perceba", diz. O local já conta, no entanto, com um museu virtual (http://www.bairroantoniobezerra.com.br/).
OPINIÃO DO ESPECIALISTA
Preservação do patrimônio
Há alguns anos, iniciativas comunitárias de memória e criação de museus ganham notoriedade em bairros da Capital. Embora originadas em diversos contextos, estas experiências trazem semelhanças quanto à participação e a apropriação do patrimônio e da memória local como ferramentas de preservação e defesa de territórios e referências culturais.
São experiências que interpretam a natureza como parte da cultura e o homem como parte da natureza, onde a comunidade é vista como patrimônio a ser preservado. Na construção desses espaços museológicos, há um deslocamento do lugar onde o discurso é construído, a partir do momento em que as próprias populações formam suas coleções, atribuem significados e criam museus.
Muitos desses grupos perceberam que a memória e o patrimônio são campos de conflito e as disputas em torno do passado refletem tensões e relações sociais vividas cotidianamente, em constante dinâmica, de dominação e de resistência nos diversos níveis e espaços, entre os grupos e indivíduos de determinada formação social.
O empoderamento de um número cada vez maior de pessoas a cerca da importância das discussões em torno do pretérito torna-se imprescindível quando se busca a proteção do patrimônio e o auto-reconhecimento dos indivíduos como sujeitos capazes de atuar criticamente sobre a realidade.
João Paulo Vieira Neto
Historiador, Coordenador do Projeto Historiando e da Rede Cearense de Museus Comunitários
Bom Jardim tem Ponto de Memória
São fotografias, vídeos, plantas dos bairros, objetos antigos, artesanato e muitas histórias de moradores do Grande Bom Jardim. Tudo isso exposto em uma sede, no Ponto de Memória do Grande Bom Jardim. O projeto, reconhecido pelo Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), tem o objetivo de mostrar um novo olhar sobre Fortaleza, o povo e as periferias ainda tão invisibilizadas.
O espaço foi consolidado a partir de rodas de conversas com diversos grupos, habitantes da Granja Portugal, Granja Lisboa, Bom Jardim, Canindezinho e Siqueira. Pescadores, artesãs, idosos, homens e mulheres se reuniram, relataram suas histórias de vida e até entregaram alguns objetos. "Ainda continuamos abertos para a doação de bens antigos que possam falar mais do nosso povo. Recebemos fotos, cartas, documentos, tudo que possa montar nosso painel de memórias", relata o integrante do Conselho Gestor do Museu do Bom Jardim, Otaviano Alves.
Segundo ele, a construção de um Ponto de Memória garante diversos meios para se produzir novos discursos sobre as identidades sociais, as relações sociais e os conhecimentos locais.
Durante todo o ano passado foram realizados encontros para a identificação de informantes chaves, o levantamento participativo de informações por categoria do referencial cultural, a coletivização do projeto no território, a mobilização de moradores para participação nas ações do museu. Foram sensibilizados uma média de 250 moradores.
"Queremos, agora, fazer uma segunda rodada dessas conversas. Realizamos também intercâmbios permanentes com outras comunidades", relata o integrante do Conselho Gestor.
Para ele, houve uma mudança na comunidade após a instalação do Ponto de Memória. Os moradores estariam mais cientes das suas origens, das vivências históricas e com mais capacidade de mudarem o curso político. "A importância disso tudo é o fortalecimento da comunidade para lutarmos por melhorias, mantermos valores".
Mudança social
Os Pontos de Memória valorizam o protagonismo comunitário e concebem o museu como instrumento de mudança social e desenvolvimento sustentável. Em estágio pleno de desenvolvimento, são capazes de promover a melhoria da qualidade de vida da população e fortalecer as tradições locais e os laços de pertencimento, além de impulsionar o turismo e a economia local, contribuindo positivamente na redução da pobreza e violência.
Inicialmente, foram desenvolvidos 12 Pontos de Memória: Belém/PA (Comunidade de Terra Firme); Belo Horizonte/MG (Comunidade do Taquaril); Brasília/DF (Comunidade da Estrutural); Curitiba/PR (Comunidade do Sítio Cercado); Maceió (Comunidade do Jacintinho); Porto Alegre/RS (Comunidade da Lomba do Pinheiro); Recife/PE (Comunidade do Coque); Rio de Janeiro/RJ (Comunidades do Pavão-Pavãozinho-Cantagalo); São Paulo/SP (Comunidade da Brasilândia); Salvador/BA (Comunidade do Beiru) e Vitória/ES (Comunidade do São Pedro).
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