À margem do mercado das grandes editoras, escritores anônimos apostaram em formatos digitais e se deram bem
Em um passado não muito distante, o principal alavancador de carreiras literárias na internet eram os blogs. Dessa plataforma saiu uma geração inteira de novos autores quase independentes. Quase, porque muitos precisaram ser encontrados por editoras de renome para que pudessem fazer da literatura profissão. Com a popularização de leitores digitais e a venda de e-books por sites como a Amazon e a loja da Apple, uma etapa pôde ser pulada. Escritores anônimos passaram a disponibilizar suas obras digitalmente, sempre a preços módicos, diretamente nas lojas online.
Desse método nasceram fenômenos da chamada autopublicação. Embora o meio ainda não tenha se popularizado no Brasil, estrelas de diferentes grandezas, dedicadas à literatura jovem-adulta nos EUA, começam a publicar por aqui. Desta vez por intermédio de editoras tradicionais.
Um dos principais nomes dessa leva é Amanda Hocking, autora de "Trocada" (Rocco), parte da trilogia "Trylle", que será adaptada para o cinema pela corroteirista de "Distrito 9", Terri Tatchell. Pouco mais de três anos depois de publicar por sua conta e risco a saga vampiresca "My blood approves", a americana de 28 anos é hoje comparada a Stephenie Meyer, a autora do megasucesso "Crepúsculo". Lançada em março em português, "Trocada" teve sua primeira tiragem de 10 mil exemplares esgotada em apenas duas semanas.
"Ainda não entendo exatamente por que esse modelo funcionou tão bem para mim e não para outras pessoas. Optei pela autopublicação depois de ler sobre alguns poucos casos de sucesso. Como eu obviamente não estava tendo muita sorte fazendo as coisas pela rota tradicional, decidi arriscar. Tudo o que sei é que escrevi livros, coloquei on-line a um preço baixo e esperei pelo melhor", conta.
Apesar do discurso humilde, a autora já vendeu milhões de exemplares de seus 13 livros (sozinha, a série "Trylle" bateu 1 milhão). Publicados inicialmente por conta própria, eles ganharam traduções em 32 idiomas, e ela pôde abandonar o trabalho de 9h a 17h para se dedicar ao que mais gosta de fazer (e faz freneticamente): escrever.
Hoje milionária - em 2011, ela assinou um contrato de US$ 2 milhões com a editora americana St. Martin, quando ela já tinha feito outros US$ 2 milhões por conta própria -, Amanda tinha motivações bastante simples.
"Queria fazer algumas centenas de dólares para conseguir visitar uma exposição sobre Jim Henson (criador dos "Muppets" e da "Vila Sésamo") num museu em Chicago. Era uma viagem de seis horas e eu não tinha dinheiro suficiente para isso, então estava cruzando meus dedos para que isso ajudasse".
Deu mais do que certo. Sua trajetória acabou inspirando milhares de outros escritores do mesmo nicho. Caso de Elle Casey. Advogada americana, casada, mãe de três filhos, radicada no Sul da França e encantada com a possibilidade de ver sua série "War of the Fae" virar "Guerra do Fae", em português (via Geração Editorial, com lançamento previsto para junho). É a primeira edição internacional de sua obra. O que era hobby, se transformou em mais de 30 mil cópias vendidas de forma espontânea a partir do exemplo de Amanda.
"Decidi publicar minhas histórias em e-book justamente quando li sobre a história de Amanda Hocking. Nunca tinha ouvido falar em auto-publicação até então e a ideia me pareceu perfeita", explica Elle. "Não sou muito paciente, ter que submeter meu trabalho a estranhos e esperar meses por uma resposta sempre me desencorajou. Fora que eu não lido bem com rejeição e ouvi dizer que o processo tradicional envolve muito disso", brinca.
Há, porém, quem tenha tentado ser publicado pelos meios tradicionais. Jessica Sorensen, de 29 anos, que será publicada no Brasil com "Os segredos de Ella e Micha" (também parte de uma série, também pela Geração Editorial, também em junho), chegou a bater na porta de editoras. Sem sucesso, mas só nisso. Listada entre os best-sellers do "New York Times" e "USA Today" com mais de 100 mil livros vendidos até o ano passado, ela conta que precisou tomar coragem para submeter seus livros aos sites de venda digital. "Sempre fiquei muito nervosa por fazer isso sem um apoio maior. Anos antes de lançar o primeiro livro, cheguei a procurar por agentes, mas não deu certo. A autopublicação foi a única maneira que eu encontrei de levar minhas histórias aos leitores".
Para o trio, nenhuma dificuldade inicial suplantou o reconhecimento do público. Sem o aporte de uma editora por trás, Amanda, Elle e Jessica precisaram se virar para divulgar seus trabalhos e fazer deles destaque em meio aos milhares disponibilizados diariamente na internet. Para isso, usaram as redes sociais e criaram do zero uma enorme e fiel base de fãs.
"Acho que muitos autores querem escrever algo de que as pessoas vão gostar", diz Amanda, adepta de elementos paranormais em suas histórias. "Para mim, a melhor maneira, é ver o que já se popularizou antes, o que é popular agora e usar como ponto de partida. Já me disseram que tenho ´tino comercial´, mas só tento dar às pessoas algo que elas queiram".
Por essas pessoas, elas demonstram não se importar com o esnobismo da indústria e de seus pares publicados (e consagrados) tradicionalmente. Enquanto nos Estados Unidos e Europa o assunto do momento é a falta de reconhecimento por parte dos principais editores e dos maiores prêmios de literatura, elas dão de ombros. O preconceito, porém, é grande.
"A Romance Writer´s Association (RWA) não permite que independentes façam parte de sua rede de autores, o que nos veta vários benefícios, inclusive poder concorrer ao prestigioso RITA Award", reclama Elle. "Mês passado Estive na London Book Fair em busca de editoras estrangeiras para vender os direitos dos meus livros e ouvi de algumas pessoas que elas não recebiam originais não-solicitados de autores ´inéditos´. Ainda não sou vista como publicada, apesar de eu vender mais livros que muita gente".
Para Amanda, a mais experiente do grupo, é necessário encontrar um equilíbrio entre a velha indústria e as mudanças provocadas pela revolução digital. "Quando vi que a autopublicação estava dando certo, nem pensei mais em procurar uma editora. Até que fui abordada por um editor húngaro. Eu não fazia ideia de como lidar com isso e contratei um agente", explica.
A internet no lugar das prateleiras das livrarias
Incentivados por novas ferramentas como a Kindle Direct Publishing, cada vez mais autores estão colocando diretamente seus livros em algum dos infinitos cantinhos da internet, à espera que leitores no mundo inteiro os descubram. Tudo isso, claro, sem precisar mais da ajuda de editores.
Mesmo ainda incipiente no Brasil, a prática tem provocado uma crise de identidade nos chamados "intermediários", aqueles que se ocupam das diversas etapas da preparação de um livro. Estaria a profissão de editor se tornando obsoleta?
"Acredito que as duas modalidades (autopublicação e publicação tradicional) vão conviver juntas, a atividade do editor não deixará de existir", avalia Pascoal Soto, diretor editorial da LeYa. "Com as plataformas de publicação digital, teremos uma oferta muito maior de livros, e é verdade que o editor não conseguirá ter controle total sobre o processo de edição. Mas, para continuar a existir, a indústria terá que se adaptar".
Adaptação
Preocupada com a nova tendência, as editoras tradicionais estão tentando participar de alguma forma do negócio. No ano passado, a Penguin adquiriu por US$ 116 milhões a Author Solutions, plataforma de autopublicação que conta com mais de 150 mil autores. Enquanto isso, a portuguesa LeYa acaba de lançar sua própria plataforma, Escrytos. Mas muitos temem que a facilidade de publicação resulte na queda da qualidade dos textos.
"Ainda é trabalho do editor pegar a massa dispersa de obras autopublicadas e transformá-la em livros", lembra Julio Silveira, cofundador da Casa da Palavra e hoje à frente da Imã Editorial. "Foi o caso de ´Cinquenta tons de cinza´. Mas é certo que a dinâmica mudou, o poder passou para os autores. A função não é mais ajudar a publicar, e sim em fazer com que o livro não caia na total obscuridade".
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