Amanhã, Moraes Moreira e o filho, Davi Moraes, reinterpretam o melhor disco dos Novos Baianos
Foi um show em Salvador, em 1969. Chamava-se "O Desembarque dos Bichos Depois do Dilúvio Universal". Ali tocaram juntos, pela primeira vez, Luiz Galvão, Paulinho Boca de Cantor, Moraes Moreira, Pepeu Gomes e Baby Consuelo: os Novos Baianos. Dois anos depois, já moravam juntos, no Rio de Janeiro, dividindo um apê de quatro cômodos.
Ali recebem a visita de um engravatado que se tornaria o verdadeiro mentor, musical e espiritual, do grupo: João Gilberto. A partir de sua influência, os talentosos cabeludos, ligados em Jimi Hendrix e Janis Joplin, mergulhariam de cabeça no samba e na bossa nova.As sugestões de João Gilberto e a guitarra afiada de Pepeu Gomes contribuiriam para a produção do mais consistente trabalho do grupo e, segundo a revista Rolling Stone, o "melhor álbum brasileiro da história": "Acabou Chorare" (1972).
Amanhã, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, um de seus idealizadores, Moraes Moreira, ao lado do filho, Davi Moraes, reinterpretam o repertório antológico, em homenagem aos 40 anos do disco, completados no ano passado. O show faz parte do evento "Dragão do Mundo", uma série de apresentações promovidas pelo CDMAC em referência à cultura dos países cujas seleções de futebol jogam em Fortaleza durante a Copa das Confederações.
Identidade
É possível citar muitos artistas e trabalhos que, em conjunto, representariam a música brasileira, nossa identidade sonora. Poucos, no entanto, são os álbuns que, inteiros, conseguem traduzi-la. Por isso, a importância do disco produzido pelos hippies baianos do Rio de Janeiro, que posteriormente - com saudades de simplicidade e de mato - se mudariam para o Sítio do Vovô, alugado em Jacarepaguá.
"Acabou Chorare" foi concebido lá, entre jogos de bola e idas à praia de bicicleta. Pepeu e Moraes foram dois dos que se empenharam no estudo da musicalidade brasileira, explorando o violão, a guitarra e o bandolim ao extremo. Segundo Paulinho Boca de Cantor, o amálgama rítmico do grupo só era possível pela vivência quase anárquica no sítio, dedicados à música e ao futebol.
"Nosso entrosamento em tempo integral foi que gerou essa experimentação. Algumas músicas, aliás, eram tão buriladas que até para nós eram difíceis de executar" , afirmou Paulinho, em entrevista para o documentário "Filhos de João - Admirável Mundo Novo Baiano", dirigido por Henrique Dantas.
Notava-se em suas letras uma certa oposição à tensão da Ditadura Militar. Um desejo grande de resgate da alegria nacional, a partir do orgulho pelas coisas mais simples: os pandeiros, a dança, o "maraca domingo". Os traços da paixão do grupo pelo futebol também são fortes nas composições.
Segundo Paulinho, certa vez, o "Novos Baianos Futebol Clube" chegou a ser chamado para jogar em Recife. "Não era nem pra cantar, era pra jogar, acredita?".
Faixas
Dos metais da guitarra de Pepeu ao drible das cordas do violão de Moraes, passando pelo batuque dos couros, o ra-tá-tá da percussão e as letras de Galvão, tudo isso traduzia o País. "Brasil Pandeiro", faixa que abre o álbum, foi sugestão de João Gilberto. Composta por Assis Valente para Carmem Miranda, que, bestamente - como julgariam os Novos Baianos - renegou-a.
Uma pena que Assis já tivesse falecido quando seu samba ufanista chegou às rádios graças aos Novos Baianos. "Chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor" era tudo o que os malucos do Sítio do Vovô queriam cantar àquela época.
"Mistérios do planeta" também virou febre e conquistou muitos intérpretes, como Marisa Monte, que a regravou em "Barulhinho Bom". A letra também traduz o espírito da turma: moleques do Brasil, jogando seu corpo no mundo, vivendo pela "lei natural dos encontros". Uma boa prova da dedicação dos músicos ao disco, que levou dois anos para ser produzido, é "Tinindo Trincando". No documentário de Henrique Dantas, Pepeu Gomes comenta que o solo criado para a faixa foi, talvez, o melhor de sua carreira.
"A Menina Dança", por sua vez, foi composta especialmente para Baby Consuelo. Segundo ela, em entrevista para a matéria de Cristiano Bastos na Rolling Stone, "a letra diz que ´estava tudo virado´ e que cheguei ´após esgotar o tempo regulamentar´. Significava que no tempo em que cantoras fabulosas, como Elis Regina e Gal Costa, bombavam, eu trazia meu estilo particular".
Já a singeleza molenga de "Acabou Chorare", faixa que dá título ao disco, é também inspiração de João Gilberto.
Mais especificamente da pequena - e corajosa - Bebel Gilberto. Tendo que acompanhar o pai em turnê, Bebel costumava misturar os ainda mal aprendidos português, inglês e castelhano, já que haviam morado no México.
Certa vez, ao cair, antes mesmo que o pai a acudisse, a pequena virou-se para ele e disse: "Não machucou papai, acabou chorare". Com um forte acento infante e "joãogilbertiano", a canção é quase uma homenagem à paternidade de João, zeloso por Bebel e pelo próprio grupo.
Mais informações:
Shows Dragão do Mundo. "Acabou Chorare", com Moraes Moreira e Davi Moraes. Amanhã, às 21h, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (R. Dragão do Mar, 81). Ingressos: R$ 10 (inteira) e R$ 5 (meia). Contato: 3488.8600
Repertório
No show, "Acabou Chorare" será tocado na íntegra:
"Brasil Pandeiro" (Assis Valente)
"Preta Pretinha" (Luiz Galvão / Moraes Moreira)
"Tinindo Trincando" (L. Galvão / M. Moreira)
"Swing de Campo Grande" (Paulinho Boca de Cantor / L. Galvão / M. Moreira)
"Acabou Chorare" (L. Galvão / M. Moreira)
"Mistério do Planeta" (L. Galvão / M. Moreira)
"A Menina Dança" (L. Galvão / M. Moreira)
"Besta é Tu" (L. Galvão / Pepeu Gomes / M. Moreira)
"Um Bilhete Pra Didi" (Jorginho Gomes)
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