Foi o pai, professor de História, quem primeiro mencionou o carrasco nazista Reinhard Heydrich (1904-1942) para o escritor francês Laurent Binet, quando esse era jovem. “Depois, só voltei ao assunto quando prestei serviço militar na Eslováquia, onde Heydrich sofreu um atentado que o deixou com ferimentos que o levaram à morte”, lembra Binet à reportagem, em conversa telefônica. Ele é um dos convidados da Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, cuja 11ª edição começa hoje, na cidade fluminense.
Binet chega ancorado pelo prêmio Goncourt de romance de estreia, de 2010, pela obra HHhH (Companhia das Letras). O título, enigmático, traz as primeiras letras da frase em alemão “Himmlers Hirn heisst Heydrich”, ou seja, o “Cérebro de Himmler se Chama Heydrich”. Uma verdade pouco conhecida: apesar de subordinado a Heinrich Himmler (chefe da SS), o belo e essencialmente ariano Heydrich participou diretamente das mais terríveis ações nazistas, como formalizar, em 1942, os planos para a solução final para a questão judaica, ou seja, o extermínio na câmara de gás.
Nomeado por Hitler como o ‘protetor’ da Boêmia-Morávia, região que incluía a Checoslováquia, Heydrich logo se outorgou poderes de ditador, com decisão absoluta sobre vida e morte sobre os cidadãos. Assim, Praga logo se tornou palco de rotineiras prisões em massa, torturas e execuções sumárias. “Durante meu período de exército, descobri a existência de dois soldados, o checo Jan Kubis e o eslovaco Jozef Gabcík, que foram incumbidos em 1942 de uma missão heroica: assassinar a Besta Nazista, como Heydrich era chamado”, conta Binet.
A dupla foi treinada na Inglaterra e tinha apenas uma chance de ser bem sucedida. Mesmo assim, não escaparia da morte, tamanha a fúria que seria despertada entre os alemães com a morte de um de seus principais líderes. A descrição do atentado, as falhas e a cinematográfica reação de Heydrich, que, mesmo ferido, saiu a pé no encalço de seus algozes, estão entre os melhores momentos da moderna literatura de suspense.
É o que explica o fascínio provocado no escritor, que decidiu recontá-lo de um modo peculiar: as lacunas históricas não poderiam ser preenchidas pela ficção - Binet decidiu estar o mais próximo possível da realidade, evitando a chamada “verdade novelística”, ou seja, aquela narrativa em que detalhes muito íntimos, como pensamentos de personagens históricos, são reproduzidos com uma fidelidade incomum.
Em suma, ele se afasta de Max Gallo, autor francês famoso pela forma romanceada com que escreve biografias, transformando qualquer presença terrena em um encadeamento de fatos emocionantes e surpreendentes, para se aproximar da técnica do alemão W. G. Sebald, para quem as identidades são sempre enganosas e o passado sempre vem oculto em versões.
“Busquei inspiração em um dos meus ídolos, o escritor Milan Kundera, e decidi escrever como se conversasse com o leitor”, comenta Binet que, de fato, elegeu como espinha dorsal de HHhH a narrativa de seu processo criativo, desde descobertas em pesquisas até confissões das dúvidas que surgiam ao longo do processo.
A técnica tornou-se ainda mais importante porque, durante a escrita, Binet foi surpreendido com a publicação de As Benevolentes (Alfaguara), em 2006, livro que garantiu o Goncourt a Jonathan Littell. Trata-se de um calhamaço (são mais de 900 páginas) em que um ex-oficial nazista relata, sem remorsos, sua participação nas atrocidades cometidas na 2ª Guerra Mundial.
“Num primeiro momento, fiquei chocado pois fazia quatro anos que eu trabalhava em um assunto semelhante e, com o sucesso de As Benevolentes, não acreditava alcançar um êxito semelhante”, disse. “Mas, logo me tranquilizei, pois Littell preferiu um caminho que não me agrada, que é falar do nosso tempo e não o da guerra. Ele trata mais de si mesmo que de seu personagem.”
A excelente recepção reservada ao livro confirmou a decisão acertada de Binet. Tão logo foi traduzido para o inglês, HHhH recebeu entusiasmadas críticas de autores como Martin Amis, Bret Easton Ellis e Wells Tower. Até mesmo leitores críticos, como o pesquisador e cineasta Claude Lanzmann, ferrenho defensor da verdade histórica, abençoou a obra justamente pela veracidade dos fatos. (Ubiratan Brasil, da Agência Estado)
Quem
ENTENDA A NOTÍCIA
Laurente Binet nasceu em Paris, em 1972. Formado em literatura pela Universidade de Paris, é escritor e professor. HHhH teve calorosa recepção crítica na França e recebeu, em 2010, o prêmio Goncourt para romances de estreia.
SERVIÇO
HHhH, de Laurent Binet
Tradução: Paulo Neves
Editora: Companhia das Letras
344 páginas
Quanto: R$ 51,00
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