Pelas treze salas do Museu de Arte Contemporânea do Ceará, onde 183 trabalhos e estudos de Leonilson estão expostos até setembro, o artista está nu. Explico: a cada bordado, pintura, gravura, desenho, colagem, escultura, caderno disposto ali, o que se vê é a intimidade do cearense radicado em São Paulo, vítima da Aids em 1993, cujo trabalho impacta pelo esgarçado da vida na obra, ou o contrário.
Uma das primeiras que os olhos tateiam é “Inflamável”, de 1990. O desenho de uma pequena garrafa, o nome do artista inscrito acima e, dentro, o fogo indicado pela palavra que dá título à obra, acompanhada de termos que o descrevem: sensível, tímido. Ao mesmo tempo, explosivo. “Quase como um coquetel molotov”, compara Bitu Cassundé, curador da exposição e um dos maiores estudiosos de Leonilson no Ceará.
Em referência à agitação que se estabeleceu no País desde junho, ele lembra que o trabalho do artista, nascido na capital cearense em 1957, era também político. Na esfera do micro, do íntimo, do pessoal, ele falava de questões maiores, comuns ao outro, a todos. Aí estava a militância. Leonilson foi um dos primeiros artistas a discutir a figura do sujeito amoroso quando o vírus HIV começava a se instalar entre os artistas, nas décadas de 1980 e 1990. Tempos em que o tema era evitado. Um inflame!
O fogo, muito presente na obra de Leonilson, especialmente na fase final – por onde, curiosamente, começa a mostra –, é o mote de uma parte da exposição. O elemento está na face de chamas, vulcão, vulcão preso numa garrafa, “como o desejo contido”, diz o curador.
Adiante, as peças usadas por ele ou presentes no seu cotidiano se tornam tela. Lençóis, calças, fronhas de travesseiro, saco de pão. O bordado “Gigante com flores”, de 1992, tão perto do fim Leonilson estava, reflete também a migração do artista para outras técnicas. Impedido de pintar por causa da doença (a tinta lhe fazia mal), resgata a influência materna e nordestina que o ensinara a bordar. Os trabalhos também diminuem em escala, daí os desenhos miúdos.
Água
Amante que Leonilson era de uma geografia do corpo e do espaço, a água aparece como outro elemento norteador da disposição dos trabalhos no MAC. É nessa sala que está “Todos os rios levam à sua boca”, de 1988, tela (sem moldura, como preferia) em que a água (entendida também como o desejo) aparece conjugada com os órgãos e ao mesmo tempo com as vias geográficas. A palavra, item fundamental na obra do artista, sussurra ao espectador o nome dos rios de São Paulo, mas também os sentimentos e impressões que percorrem as veias humanas.
Mesmo nos grandes trabalhos, aqueles dotados do “laranja Leonilson”, da pintura viva e forte, a palavra merece atenção. Dos títulos às inserções poéticas, às vezes apenas rabiscadas, ele estabelece com o espectador uma relação próxima, quase cúmplice. “O espectador sente como se ele fosse um amigo confessando um segredo”, Bitu explica.
A linha, outra marca utilizada não apenas nos bordados, mas também nas pinturas e desenhos, é o símbolo de Leonilson para a água. Essa correnteza que não é perene, mas sempre interrompida, pontilhada, atravessada, mostra um tanto da busca dele pelo outro, que, apesar da incessante procura, raramente encontra. Quando se esbarram, sempre há resistência, ‘sim’ e ‘não’.
Aí reside o mistério do trabalho de Leonilson, segundo Ana Valeska, outra que nos conduz pela intimidade do artista. “Eu acho que ele vai fundo nessa busca humana pelo encontro, dessa dificuldade da solidão”, diz a artista plástica e também professora de História da Arte. Embora já conhecesse muitas das obras expostas – há trabalhos do próprio acervo do MAC, do Museu de Arte Moderna de São Paulo e do Projeto Leonilson –, ela conta ter sido novamente afetada pelos trabalhos.
Coração
Em meio a essa busca frustrada pelo outro, um elemento recorrente em Leonilson é o coração. O artista que não teme expor as suas tantas verdades – sim, porque também há ficção – coloca às vistas do público o que há em si de mais íntimo, mostra o sentimento às avessas, como quando exibe a parte interna do bordado.
“Talvez mais do que o corpo, o coração seja o motivo dominante e recorrente da obra. O coração como órgão muscular, bombadeor de sangue através de veias e artérias; o coração como centro vital das emoções e sensibilidades do sujeito, repositório de seus sentimentos mais sinceros, profundos e íntimos”, escreveu certa vez o curador Adriano Pedrosa.
Esse coração amoroso, que não está dissociado de pensamento e acolhe múltiplas interpretações, aparece em “Leo não consegue mudar o mundo”, de 1989, em “Pensamentos do coração”, de 1986, na pequena escultura “Sagrado Coração” e até onde o órgão vira alvo, tal o pensamento da arte contemporânea naquele momento de epidemia da Aids.
“Ele conseguiu um diálogo muito fértil com ele mesmo. No trabalho de Leonilson isso é muito especial. Não há separação entre arte e vida. Esse ‘e’ não cabe. Por isso que é tão forte”, sintetiza Ana Valeska.
SERVIÇO
Exposição Leonilson Inflamável
Quando: Até 8 de setembro.
Onde: Museu de Arte Contemporânea do Ceará (Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura).
Visitação de terça a quinta, das 9 às 19 horas; e de sexta a domingo, das 10 às 20 horas.
Gratuito.
Outras informações: 3488. 8600
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