Estamira é uma daquelas personagens que, não fosse de verdade, seria necessário talento generoso para forjá-la. Catadora do lixão de Gramacho, desativado há mais de um ano, no Rio de Janeiro, era também doente mental. Padecia de uma loucura crônica que lhe imbuía de uma lucidez certeira que só os “loucos” têm. Impressionado com a sabedoria da mulher sem meias palavras, o cineasta Marcos Prado a descobriu em 2005 e, num filme com o nome dela, documentou suas reflexões sobre a sociedade dita “normal”.
Foi depois de ver o documentário que a atriz Dani Barros concebeu o projeto de levar a personagem aos palcos. Estamira – Beira do Mundo, que chega a Fortaleza no próximo fim de semana, é resultado do impacto que o filme de Prado causou na atriz. “A primeira vez que assisti ao filme fiquei completamente apaixonada por ela”, derrete-se.
Até se decidir por transformar o documentário em monólogo foram quatro anos. Mais dois até Dani viabilizar a ideia e, em 2011, estrear. A dramaturgia foi dividida com a também diretora Beatriz Sayad. Parceira de outros trabalhos, inclusive o desenvolvido nos hospitais, com os “Doutores da Alegria”, a sintonia se deu por um critério simples: ser tocada pela história da catadora.
Além de Estamira ser “uma grande personagem, um vulcão”, como diz Dani, há um componente da história da atriz que terminou sendo fundamental para a peça. “A minha mãe tinha depressão e, desde pequena, frequentei hospitais psiquiátricos. Quando assisti (ao documentário), vi exatamente as coisas que gostaria de falar, o discurso da Estamira era o que eu queria dizer. Então, brinco de ser Estamira e coloco muitas das coisas que estavam engasgadas, coisas que eu queria falar e não podia quando acompanhava minha mãe”, conta.
Mulher Maravilha
Não bastassem as memórias pessoais, ainda bem vivas, Dani também foi direto à fonte para construir a personagem. Em 2011, poucos meses antes de Estamira falecer, aos 70 anos, em decorrência de uma infecção generalizada, a atriz esteve com a mulher cuja missão, dizia, “era revelar a verdade, somente a verdade”.
Conhecer Estamira “foi a realização de um sonho, foi como se eu tivesse conhecendo a Mulher Maravilha”, diz Dani. Nessa convivência, ainda que rápida, a protagonista doou não apenas sua história, que o documentário já tinha mostrado e agora o Teatro contaria. Segundo Dani, o fim da peça - surpresa reservada ao público - foi dado por Estamira, quase como um dos ensinamentos que ela distribuía a quem lhe oferecesse os ouvidos em meio ao lixão.
“Foi muito importante, a gente foi se aprofundando mais e mais, a história ganhou mais camadas”, explica a atriz.
Assim, mais que um laboratório, a convivência com a personagem só inspirou Dani a continuar fazendo algo a que poucos se arriscam: permitir-se dar ouvidos aos loucos. “A sociedade não sabe lidar com a loucura, não sabe ouvir. Mas a loucura, pra mim, é muito coerente. A loucura da Estamira é muito contundente, é impressionante a capacidade dessa mulher de ver, no meio do lixo, o lixo em que a sociedade vive”, diz ela.
É a força desse personagem real, cuja consciência de que todo “cérebro é um gravador sanguíneo” e o seu não era dos mais comuns, que Fortaleza recebe - não sem alguma demora. Numa linguagem ora grotesca, ora sublime, Estamira - Beira do Mundo passa pela Capital em sua terceira temporada. E, além de toda bagagem de prêmios e vivências, traz ainda o afeto de Dani pela cidade de seus familiares.
“Estou muito feliz de estar fazendo em Fortaleza, a terra que é da minha família, do ex-marido da minha mãe, que foi meu pai e um grande incentivador pra eu ser atriz”, conta.
Após cada apresentação, Dani faz um bate-papo com o público sobre o processo de construção da personagem. Um bônus da atriz que promete um encontro, do começo ao fim do espetáculo.
Multimídia
Assista ao documentário “Estamira” no link: http://bit.ly/11HHpdK
SERVIÇO
Estamira – Beira do Mundo
Quando: 09, 10 (às 20h) e 11 de agosto (às 19h)
Onde: Caixa Cultural Fortaleza (Av. Pessoa Anta, 287 – Praia de Iracema)
Quanto: R$ 10,00 (inteira) e R$ 5,00 (meia-entrada para estudantes e pessoas acima de 65 anos, mediante apresentação de documento com foto)
Classificação indicativa: 14 anos
Outras infos: (85) 3453.2770
Saiba mais
Prêmios
O documentário Estamira (2005), de Marcos Prado, foi premiado pelo Festival do Rio, Mostra de Cinema de São Paulo e o Grande Prêmio do Festival Internacional de Documentário de Marseille. A adaptação para o teatro, que chega agora a Fortaleza, também contabiliza vários prêmios. Entre eles, Shell de Melhor Atriz, APTR Melhor Atriz Coadjuvante, APCA de Melhor Atriz e Prêmio Questão de Crítica.
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