O escritor modernista Mário de Andrade (1893-1945) tinha plena consciência do que exatamente significavam as pilhas e pilhas de cartas – por volta de 7 mil – que trocou ao longo da vida com seus cerca de 1100 interlocutores. Uma prova é “Amadeu Amaral”, texto de 1939 publicado no livro O empalhador de passarinhos, em que Mário sentencia: “Eu sempre afirmo que a literatura brasileira só principiou escrevendo realmente cartas com o movimento modernista”.
Explica-se: “Cartas com assunto, falando mal dos outros, xingando, contando coisas, dizendo palavrões, discutindo problemas estéticos e sociais, cartas de pijama (...): só mesmo com o modernismo se tornaram uma forma espiritual de vida em nossa literatura”.
Sobram exemplos para resguardar a análise de Mário. A amizade entre ele e o também escritor Oswald de Andrade, outro nome importante da Semana de 22, foi rompida por carta, em 1929. Na época, morando em Paris, Oswald ainda era casado com a pintora Tarsila do Amaral, a quem a missiva foi endereçada.
Em setembro de 1923, o poeta Manuel Bandeira – um de seus maiores amigos epistolares – qualificava Monteiro Lobato de não menos que “canalha, cuja palavra não merece fé”, porque, mesmo com promessas renovadas, tinha resolvido não mais publicar seu livro. É também por culpa ou graça de Bandeira que Mário modifica muito de sua produção.
Já para o jovem Carlos Drummond de Andrade, era Mário que servia de algoz literário: “Bote a frase franca que assim ela fica sensual mas pura. E o poema de você é puro”, aconselhava para os versos de Alguma Poesia, que saiu em 1930. Entre um poema e outro, Drummond passava mal com nossas paisagens. “Acho o Brasil infecto”.
Apaixonada por Mário, Anita Malfatti, que incendiou a pauliceia com uma das primeiras exposições vanguardistas na Cidade, cometeu o que ela mesma chamou de “lesa amizade”, mandando a ele uma carta em que declarava os sentimentos. Arrependida, pediu depois que rasgasse.
Projeto
Segundo Marcos Moraes, pesquisador do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), da USP, e organizador da coleção Correspondência Mário de Andrade, laçada pela Edusp, “de 1922 a 1945, quando ele morre, toda essa geração modernista - Drummond, Bandeira, Tarsila, (Candido) Portinari, Anita (Malfatti), (Lasar) Segall, (Câmara) Cascudo, (Heitor) Villa-Lobos etc - aparece na correspondência de Mário como um romance de geração: os gestos, os atos, os movimentos”.
Mário entendia esse intercâmbio intenso como um projeto intelectual. Uma tentativa de aliciar intelectualmente os companheiros daquele período para a construção de um modernismo que jogasse luzes sobre as bases da cultura brasileira. “O assunto é sempre o mesmo: abrasileirar o Brasil”, destaca.
“A correspondência era um espaço privilegiado de sistematização teórica porque nela é possível atingir um grau de abertura muito especial, de constante tentativa e erro”, explica o professor de Literatura Brasileira na Universidade de Princeton, Pedro Meira Monteiro. “Mário era um sujeito interessado, mas não interesseiro. Seu interesse era no Outro, na voz que confrontava e enriquecia a sua”, afirma ele, que é organizador da compilação da correspondência entre Mário e Sérgio Buarque de Holanda.
A doutora em Literatura Brasileira pela USP, Gênese Andrade, resume: “Com alguns, como Bandeira, Drummond, Murilo Miranda, Anita Malfatti, ele era mais profundo, fazia confissões. Com outros, como Tarsila e Oswald, a conversa ficava mais no plano estético ou de questões ponturelativas à produção artística”.
Ao morrer, Mário deixa expressa uma vontade que denunciava sua lucidez: pedia que as missivas ficassem encerradas por 50 anos – no que foi atendido.
Nesse desejo, Moraes identifica duas dimensões: uma ética (para preservar pessoas) e outra histórica. “Conservar aquela documentação era conservar a história subterrânea do modernismo”. Esses manuscritos estão atualmente no IEB, em São Paulo.
Mário 120 anos
Desde abril, o Vida & Arte publica mensalmente matérias especiais sobre Mário de Andrade para celebrar os 120 anos do escritor, que serão comemorados em outubro próximo. 1) A primeira matéria da série tratou do Mário crítico musical. 2) A segunda tratou das viagens do escritor pelo Brasil e seu projeto etnográfico 3) A matéria seguinte, publicada em junho, tratou do antagonismo entre Mário e Oswald de Andrade 4) A quarta matéria focou na participação de Mário na Semana de Arte Moderna.
Você pode acompanhar a série no portal O POVO Online (www.opovo.com.br)
Saiba mais
Marcos Moraes é autor do livro Orgulho de Jamais Aconselhar em que analisa a relação de Mário com personalidades mais jovens – que lhe mandavam, por exemplo, poemas, romances ou ensaios. Para esses, a correspondência de Mário vinha imbuída de um componente pedagógico. A ideia não era ensinar ou aconselhar, mas fazer que os moços, por méritos próprios, conseguissem superar as dificuldades. “A partir de certo momento, esse diálogo coloca em xeque aquilo que foi construído para favorecer a autonomia e a liberdade. Uma concepção de que formar o artista é formar um cidadão. É uma concepção política”.
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