Mesmo quem não conhece a obra de Ednardo, certamente já ouviu e até dançou, no Pré-Carnaval de Fortaleza, embalado pelos versos “eu sou a nata do lixo, eu sou o luxo da aldeia, eu sou do Ceará”. O trecho está em “Terral”, uma das canções que mais evocam certa identidade local. Mas na obra do cantor e compositor a referência a essa cearensidade não se encontra em apenas uma música. O trabalho dele, que este ano comemora quatro décadas, é repleto de paisagens e expressões da cultura cearense.
E é com essa percepção que o pesquisador Gilmar de Carvalho prepara-se para lançar, em livro, uma análise que fazia desde 1982, quando escreveu artigo acadêmico investigando o Ceará refletido nos dez primeiros discos de Ednardo. O Ceará do Ednardo, que já está na gráfica e tem previsão de lançamento para novembro, é uma atualização desse texto.
“Ele trabalha muito bem referenciais da tradição cearense sem cair no paródico, no folclore, e isso é o ponto de partida para uma produção sofisticada que tinha maracatu, reisado, pastoril, a Padaria Espiritual, Iracema, Bárbara de Alencar”, observa Gilmar, que assume a posição de fã do cantor. Ao longo de 92 páginas, a obra faz a correlação entre esses elementos e a melodia bem trabalhada de Ednardo, responsável por um imaginário cearense importante, conforme o autor.
Voltado para o trabalho de Ednardo, o livro não traz a biografia do cantor, mas seu olhar para a terra que o pariu. “O Ceará dele parte da tradição, mas atualiza essa tradição de modo bastante crítico. Ele é muito felino, muito mordaz. O Ceará dele não é de cartão postal, de turismo, mas bastante antagônico, na maioria das vezes, tenso, hostil, mas muito rico. É o Ceará que eu gosto”, diz Gilmar.
Para Ednardo, o livro é um presente neste ano de comemorações. “Tenho o maior respeito pelo Gilmar e fico muito feliz dele ter tomado essa iniciativa. Isso junta forças em relação a essa coisa que eu convencionei chamar de 40 anos de canção”, diz ele, por telefone.
Além dos textos de Gilmar, vinte fotografias de Francisco Sousa compõem a obra, viabilizada graças ao apoio cultural da Guanabara.
Ainda sem data certa para chegar ao público, Gilmar de Carvalho antecipa aos leitores de O POVO um trecho do livro. Confira no quadro ao lado.
“O Ceará dele (Ednardo) não é de cartão postal, de turismo, mas bastante antagônico, na maioria das vezes, tenso, hostil, mas muito rico. É o Ceará que
eu gosto...” Gilmar de Carvalho
Trecho do livro
Um cantar cearense
“Somos um povo que canta – muitas vezes sem razões aparentes para a alegria.
A canção estaria na palma dos coqueiros, no vento soprando os grãos de areia das dunas, no mar quebrando nas praias paradisíacas, no cenário clichê que se contrapõe às secas, à aspereza do espinho, à terra crestada pelo Sol.
O aboio, a incelença, o bendito, o repente, o coco são manifestações de cantares, as várias vertentes a que se associam as propostas de nossos compositores, os nossos cantores num sentido mais amplo e mais próprio, afinal, são eles que elaboram e dão forma ao mote que é cantar.
Existiria um cantar cearense? Um canto com sotaque que refletisse e digerisse todas essas influências folk, telúricas, e expressasse um jeito peculiar de ver/sentir/ falar do mundo?
O propósito de aprofundar essa questão nos leva a Ednardo, estuário urbano e cosmopolita de todas essas influências.
A escolha de Ednardo para esta tentativa de análise não parte de mero capricho ou da preferência pessoal – que dispensa justificativas. Dentre todos os discursos dos compositores populares cearenses, o dele é o mais rico para uma análise com a finalidade de encontrar e pinçar traços do que seria um cantar cearense.
Um corte nos primeiros dez anos de carreira de Ednardo vai nos mostrar um compositor em plena vitalidade e esforço criativo, capaz de guinadas, revisões, depurações.
A facilidade da escolha de Ednardo se choca com a dificuldade que ele tem de se ajustar aos rótulos, às tentativas de classifi-cação e compartimentação. Ele tenta, ousa e pontilha o trabalho com influências várias, do rock ao maracatu, do frevo à lambada, o que dá ainda maior riqueza e diversidade às propostas do compositor cearense.”
O trecho foi retirado da introdução de O Ceará do Ednardo, de Gilmar de Carvalho
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