Em uma pequena rua do Planalto Pici, o Museu da Boneca de Pano traduz o melhor da combinação de afeto e cultura
Criança, um dos sonhos de Luduína Rodrigues era ganhar a boneca Susi. À época, porém, o brinquedo era caro, além das possibilidades de renda da família. A mãe da menina, então, fazia bonecas de pano. Embora não fossem sua primeira escolha, as pequenas personagens costuradas rendiam a Liduína algumas horas de brincadeiras.
Décadas depois, ela entendeu que no ato da mãe residiu uma das mais grandiosas demonstrações de afeto – doar algo feito com as próprias mãos, assim como cozinhar ou mesmo escrever uma carta.Não por acaso, as bonecas de pano retornaram à sua vida, no começo da década de 1990, dessa vez construídas por ela mesma, vendidas para alegrar outras crianças. Em 2009, as criaturinhas de retalho e linha ganharam nova dimensão na vida de Liduína.
Formada em Pedagogia e funcionária pública em uma escola, também era protagonista no desenvolvimento de projetos culturais no Planalto Pici, onde mora até hoje. Por isso, foi convidada a colaborar na regulamentação do Museu do Mangue. “Encantei-me com aquilo tudo e pensei: por que não um Museu da Boneca de Pano?”.
Simbólico
Três anos depois, o projeto já estava de pé e aberto à visitação. Com fachada que reproduz uma casa de taipa, é pequenino, no andar de baixo da própria casa de Liduína e seu companheiro, o artesão Thauei.
Mas o que tem de modesto no tamanho, tem de grandioso no simbólico. Em uma pequena sala, a artesã guarda dezenas de bonecas e outras figuras de pano, oriundas de vários Estados do Brasil e também de outros países.
Há desde dedoches (fantoches para dedos) até o casal de bonecos gigantes Severino e Severina, xodós da casa. “Esses o Tchauei quem fez. As pessoas costumam gostar muito deles”, comenta.
Nas etiquetas de identificação constam os nomes dos doadores, o tipo de boneca e o local onde foram adquiridas ou confeccionadas. Uma das primeiras contribuições, por exemplo, veio da designer e professora da Universidade Fumec (MG), Cássia Macieira, que doou exemplares de suas bonecas com estampas de serigrafia (inclusive uma de suas famosas Frida Kahlo) – mais uma peça de arte que exatamente um brinquedo.
Fruto de doações, de compras ou confecções da própria fundadora, Liduína Maria Lopes Rodrigues, o acervo do Museu inclui bonecas de diferentes países e Estados do Brasil, construídas a partir de técnicas variadas Fotos: Alex Costa
Outra doação antiga é a série de bonecas negras chamadas Abayomi, adquiridas pelo professor e amigo Carlos Brito na Cooperativa Abayomi, no Rio de Janeiro. “É um tipo feito apenas com nós e retalhos, sem costuras. Também há uma variação delas feita com arame”, explica Liduína.
Entre as preferidas da artesã também aparece uma boneca Tilda, tipo criado pela artista norueguesa Tone Finnanger, característica por seu formato longilíneo e articulado nas pernas, pelas bochechas rosadas, rosto sem boca e figurino caprichado.
Em outra parede, estão as antigas “bruxinhas” – típicas bonecas de pano nordestinas, com traços e acabamento bem simples. “Essas fizeram parte da infância de muitos adultos hoje”, frisa Liduína.
Há também belas bonecas negras, oriundas de lugares como a Associação de Quilombola Afrodescendente do Horizonte (CE), ou fabricadas pelo próprio Tchauei.
Histórias
A lista segue. Inclui ainda bonecas feitas com corda (da artesã Eliete Soares), com meias, outras compradas há 15 anos em Juazeiro do Norte e duas Emílias (no estilo antigo e novo), além daquelas de outros países, como uma simpática bonequinha do Peru.
Dos importados, destaque também para dedoches e fantoches da França, Espanha e China. A diversidade mostra como a boneca de pano é um elemento cultural presente em diferentes épocas e lugares do mundo, tanto no universo infantil quanto das artes.
Tudo começou, porém, com uma boneca nem tão exótica ou bem acabada, mas que guarda a história do início do acervo. “Foi Tchauei quem me ensinou a costurar. Depois, fiz um curso de bonecas de pano, no Centro. Certa vez, o marido de uma amiga comprou uma boneca minha para fazer as pazes com a esposa”, recorda.
“Coincidentemente, eu e ela nos reencontramos na escola onde sou funcionária. Quando soube do projeto do Museu, disse que ainda tinha a boneca e a doou para o acervo”, comemora a fundadora. Em um salto no tempo, Liduína mostra uma das bonecas mais recentes que fez. “Batizei ela de Flor, que são as iniciais do nome completo da minha mãe, Francisca Lopes Rodrigues. Ela tem a peculiaridade dessa peruca, que era realmente de mamãe. Ela faleceu de câncer de mama, resolvi usar essa memória na boneca”, conta a artesã.
Dedicação
Desde o início o Museu da Boneca de Pano tem acompanhamento da museóloga Graciele Siqueira, que trabalha no Museu de Arte da UFC (MAUC). “Ela se encantou pela ideia e colabora na base da amizade mesmo”, frisa Liduína.
No sentido de também se aperfeiçoar, a artesã fez em 2010 o curso “Organização de Museus”, promovido pelo Museu do Ceará e ministrado pelo professor João Alfredo de Sá Pessoa.
Entre conquistas recentes da instituição, Liduína resslata uma exposição realizada neste mês no Estoril, com bonecas do acervo. Em 2012 também realizaram uma mostra no MAUC e expuseram peças no Museu da Miniatura. “Neste ano participamos ainda da 11ª Semana de Museus”, complementa a artesã.
Apesar da gradual conquista de espaços, tudo no Museu da Boneca de pano ainda é feito com recursos próprios, resultado de mais nada senão o puro amor às bonecas.
“Hoje fico dividida entre as tarefas no emprego e no museu. Às vezes quero terminar uma boneca logo, mas chego muito cansada”, desabafa.
O tom muda, porém, quando Liduína fala sobre as reações do público. “Quando são idosos, os olhos brilham ao ver as bonecas, pelas lembranças que trazem. As crianças também se encantam, apesar de viverem nesse mundo tecnológico”, observa a artesã, que recorda especialmente da visita de um grupo de crianças com deficiência visual.
“Elas pegavam nas bonecas com atenção, percebiam as formas, as texturas. Encostavam no rostinho”, lembra. “Acho que o diferencial da boneca de pano é que a criança precisa imaginar tudo. Ela não anda, não fala, como algumas bonecas de plástico”.
Para Liduína, a própria relação de afeto entre quem faz a boneca e quem recebe é outra. “Por isso, também queremos com o Museu resgatar esse fazer artesão”, complementa.
Nesse sentido, entre as ações promovidas pela instituição está a realização de oficinas de bonecas de pano. “Já realizamos uma para senhoras, com o objetivo de geração de renda. Também tivemos uma no período da exposição no Estoril, para crianças. Em novembro, teremos uma com a artesã Maria odete de Sousa Cruz)”, adianta.
Sempre que possível, Liduína também promove atividades na escola municipal próxima, da qual é funcionária. “Já tivemos cursos, contação de história e, recentemente o Cine Tempo do Ronca (cineclube). Queremos adaptar o espaço do Museu para receber essas atividades”, explica.
Faz parte ainda dos objetivos da instituição mapear a existência e atuação de mulheres bonequeiras no Ceará.
Social
As ações desenvolvem-se a partir da perspectiva de uma nova museologia. Para Luduína, o papel do Museu não é mais o de “só mostrar as coisas e as pessoas virem olhar”, mas o de promover essa interação com a comunidade.
Um bom exemplo dessa postura é o espaço dentro do Muse dedicado à história do bairro, com fotos e texto do livro “Caravelas, jangadas e navios – uma história portuária”.
Da mesma maneira, o baú com bonecas doadas por alunos da escola municipal onde ela trabalha dá sinais dessa troca com a comunidade.
Por enquanto, o Museu da Boneca de Pano só atende grupos mediante agendamento. “Não tem como deixar aberto sempre, porque preciso estar aqui ou pagar alguém para receber as pessoas”, explica.
“Agora que estamos mais estruturados, temos interesse que órgãos públicos nos apoiem, divulguem. Até mesmo para que as pessoas vejam que nas comunidades não há apensa crime, mas arte também”, critica.
Mais informações
Museu da Boneca de Pano
Agendamento de visitas: (85) 8631.3064 ou museudabonecadepano@gmail.com ou facebook.com/museudabonecadepano.pano
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