A Guerra de Secessão (1861-1865) beneficiou a nascente indústria algodoeira cearense. Ao interromper a exportação do produto para a Europa, os Estados Unidos deixaram espaço para que o algodão saísse do porto de Fortaleza, vindo do Interior, em direção às fábricas inglesas de tecido.
Assim a capital viu florescer uma elite burguesa, ávida por imitar Paris e executar um projeto de cidade com traçado urbano planejado, belos jardins e grandes hospícios, regras rígidas de conduta e alijamento dos mais pobres dos melhores espaços, meios inéditos de transporte público com divisões sociais.
Era a chamada “belle époque”, termo controverso de um período igualmente cheio de contradições, que o professor do departamento de História da UFC, Sebastião Ponte, detalhou há exatos 20 anos no livro Fortaleza Belle Époque – reforma urbana e controle social (1860-1930). O estudo, fruto de um mestrado, tornou-se um marco nas pesquisas sobre o assunto.
Dentre suas contribuições mais importantes, está a capacidade de perceber, largamente influenciado pelo filósofo francês Michel Foucault, as manifestações do poder, e seus diversos vetores de controle social, que se forjavam aqui na intenção de pôr em prática um projeto nitidamente racional de cidade. Era um fenômeno global.
Começava pelo traçado das ruas. Em 1875, o pernambucano Adolfo Hebster propunha ampliar o formato de tabuleiro de xadrez para as ruas, criando três boulevards - as avenidas do Imperador, Duque de Caxias e Dom Manuel. Além disso, um Código de Postura disciplinava a vida “para manter a harmonia do conjunto urbano”, conforme o texto de 1893.
Com o advento dos bondes, ninguém podia passear se não fosse bem vestido. Hospícios foram criados para enquadrar loucos e vagabundos. O Passeio Público, com suas alamedas específicas para as classes sociais, reforça a marca de uma sociedade dividida.
Segundo Ponte, teorias científicas como o positivismo daquele fim de século dão o arcabouço teórico para as metamorfoses urbano-sociais feitas pelas elites. “Os homens de saberes racionais se reuniram nas academias científicas para interpretar o Ceará e fomentar o seu progresso material e tecnológico”, afirma.
Não à toa a Padaria Espiritual (1892), grupo de irreverentes escritores locais, surgiu nesse período. Além disso, o fortalezense viu a emergência de instituições que duram até hoje, como a Academia Cearense de Letras (1894) e o Instituto Histórico e Antropológico (1887). É o tempo também das comunicações mais modernas: “telégrafo (1881), cabo submarino para a Europa (1882), serviço telefônico (1883) e caixas postais (1889)”.
“A ideia na época é que o progresso só será alcançado na fábrica e na ciência. E os médicos eram a vanguarda disso. Como a medicina é voltada para o estado sanitário e higiênico, tudo que é urbano não pode escapar a esse olhar”, afirma.
Disciplina da vida urbana para o progresso e a civilidade são as palavras de ordem. E, num contexto de euforia em relação ao futuro, referendado pela imprensa da época, o modelo afrancesado de cidade não fica sem a resistência da “arraia-miúda”. O povo percebeu a estranheza desse jeito de ser.
“O chamado ‘Ceará moleque’ era a forma pejorativa que as elites tratavam os comportamentos irreverentes e debochados. As revistas de moda e luxo ainda falam do espírito da molecada que ‘nos governa e macula nossa imagem de gente civilizada’. Nessa irreverência, havia uma forma de resistência e descontentamento. E é bem diferente do Ceará moleque que é vendido hoje como turístico”, diz Ponte.
Legado
O que entendemos pela história de Fortaleza está, em grande medida, nesse período da “belle époque”. Alguns exemplos: Theatro José de Alencar (1910), Palacete Senador Alencar (1871), Estação João Felipe (1873) e Edifício da Secretaria da Fazenda (1927) – e ainda o Sobrado Doutor José Lourenço ou o Mercado dos Pinhões.
Esses edifícios são uma parte importante do que entendemos hoje por ser o complexo conceito da “identidade” de Fortaleza. “Podemos dizer que a capital tem várias identidades: uma delas é a que lhe é a mais antiga, que habita seu centro histórico, a Fortaleza Belle Époque”, destaca Ponte.
Ao mesmo tempo em que legou para nós seus monumentos, aqueles anos também se encarregaram de construir a Fortaleza excludente que é hoje, dado que as décadas seguintes, com uma explosão demográfica assustadora, só aprofundaria.
Mas o que aquela Fortaleza poderia ensinar à cidade de quase três milhões de habitantes? “Havia talvez mais vontade política para realmente resolver alguns problemas. Eles acreditavam que os loucos poderiam ser mesmo recuperados no asilo e voltar à ação do trabalho. Havia uma preocupação em cuidar da cidade. Os jardins eram muito bem cuidados. A população não tinha o usufruto que as elites tinham, mas tudo trazia um fascínio”, pondera o professor.
SERVIÇO
Fortaleza Belle Époque – reforma urbana e controle social (1860-1930)
Autor: Sebastião Ponte
Editora: Edições Demócrito Rocha
Preço: R$ 55
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