Já faz algum tempo que uma nova geração de cineastas vem tentando trazer de volta o filme de horror para o cinema brasileiro. E alguns têm conseguido, embora raramente esses filmes tenham chegado ao circuito comercial. Quando se fala de cinema de horror brasileiro, costuma-se associar muito à figura do Zé do Caixão, personagem mítico de José Mojica Marins, que de fato foi uma das criações mais importantes de nossa cinematografia, tendo rendido alguns grandes filmes, principalmente na década de 1960.
Muita gente esquece (ou não sabe) que, na década de 1970, cineastas do porte de Walter Hugo Khouri e Carlos Hugo Christensen, entre outros tantos, conseguiram fazer cinema de horror de maneira séria e sofisticada. Nos anos 1980, diretores como Antonio Carlos da Fontoura ("Espelho de carne", 1984) e a dupla José Antônio Garcia e Ícaro Martins ("Estrela nua", 1984) uniram o erotismo com o terror com resultados brilhantes. Hoje, temos Rodrigo Aragão, que aos poucos está conseguindo chegar ao mercado com seu terceiro longa, "Mangue negro" (2013).
Mesmo assim, existe um pensamento errôneo de que o cineasta brasileiro não sabe fazer filme de horror. Além de ótimos diretores, como o cearense Petrus Cariry e o pernambucano Kleber Mendonça Filho, que também têm infiltrado o cinema de gênero em seus dramas sociais, o coletivo paulista Filmes do Caixote vem tentando mudar esse pensamento há anos. Dois membros da turma, Marco Dutra e Juliana Rojas, construíram uma série de curtas fantásticos que solidificaram sua estrada para os longas. O primeiro deles, "Trabalhar cansa" (2011), foi assinado por Dutra e Rojas e ainda não abraçou o horror em sua totalidade, embora possua uma atmosfera sinistra bem particular.
Sandy
E finalmente chegamos em "Quando eu era vivo" (2014), assinado apenas por Dutra, mas tendo Juliana como montadora. Trata-se de uma obra que já causa estranheza ao ver o elenco com Antônio Fagundes, Sandy Leah e Marat Descartes. No caso de Descartes, não há nada de estranho, já que ele foi protagonista de "Trabalhar Cansa" e estreou no cinema em um curta da dupla Dutra-Rojas, "Um Ramo" (2007). Mas a presença de Sandy, por exemplo, é uma escolha no mínimo inusitada.
E quem pensava que a cantora com rosto de boneca (de fato, no filme, ela parece uma boneca) estragaria o trabalho de Dutra está muito enganado. Ela é a terceira personagem mais importante de "Quando eu era vivo" e é fundamental para a construção da trama. Sua voz doce é essencial para a perturbadora cena envolvendo magia negra.
O filme se inicia com Júnior, o personagem de Descartes, retornando à casa do pai (Antônio Fagundes). Ele havia se separado da esposa e estava passando por uma difícil questão envolvendo a guarda do filho. Porém, já estava conformado que a guarda seria dada para a mãe. Rejeitando as tentativas de trabalho que o pai lhe arranjava, Júnior prefere ficar na casa, lugar que ainda possui reminiscências escondidas de sua falecida mãe.
Todo esse material havia sido guardado pelo pai, que diz que trazer à tona coisas do passado dá azar. Mas não se trata apenas disso. Os estranhos vídeos encontrados, além de uma partitura com uma mensagem criptografada, são elementos que deixam Júnior ainda mais intrigado. Para desvendar o mistério, ele procura a ajuda da jovem inquilina do pai, Bruna (Sandy), uma estudante de música.
"Quando eu era vivo" tem suas qualidades apoiadas não apenas no desempenho dos atores e na direção segura de Dutra, mas também na fotografia linda de Ivo Lopes Araújo (responsável pela direção de fotografia de "O Grão", de Petrus Cariry, e de "Tatuagem", de Hilton Lacerda); e na trilha sonora (assinada por Dutra, Guilherme Garbato e Gustavo Garbato), que desde os créditos iniciais já dita o tom. O filme é adaptado do romance "A arte de produzir efeito sem causa", de Lourenço Mutarelli.
O roteiro da adaptação foi feita por outro nome de primeira grandeza entre os novos cineastas brasileiros, Gabriela Amaral Almeida, mais conhecida pelo premiado curta-metragem "A mão que afaga" (2012), possuidor de uma atmosfera quase lynchiana, em parceria com Dutra. Logo, percebe-se que há todo um cuidado para que todos os elementos contribuam para que "Quando eu era vivo" represente um novo e excitante momento de nosso cinema.
Ainda que distribuído em poucas cópias no Brasil, a intenção é conquistar o público aos poucos, de modo que consigamos ganhar um pouco mais de espaço nesse território ocupado principalmente pelas comédias globais. Como diria alguns personagens de certo filme de David Cronenberg: vida longa à nova carne!
Leia mais em blogs.
diariodonordeste.com.br/blogdecinema
Mais informações
"Quando eu era vivo" (Brasil, 2014), de Marco Dutra. Com Antônio Fagundes, Marat Descartes, Sandy Leah, Eduardo Gomes, Gilda Nomacce, Helena Albergaria, Kiko Bertholini, Lilian Blanc, Lourenço Mutarelli. Salas e horários no caderno Zoeira.
|