A cronologia mais aceita localiza a Tropicália entre os anos de 1967 e 1968. O acontecimento (na falta de palavra melhor que o defina) é ordenado em torno do disco-manifesto coletivo que reuniu Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Tom Zé, os Mutantes; e de ações simultâneas empreendidas em outras frentes artísticas, como o teatro (com Zé Celso e o Oficina), as artes visuais (Helio Oiticica), o cinema (Glauber Rocha) e a poesia (Torquato Neto). Depois, quando a Ditadura Militar endureceu ainda mais e forçou o exílio de Caetano e Gil, em Londres, o grupo se desfez e as ações tornaram-se menos harmoniosas entre si.
Jorge Mautner nunca viu o tempo como uma linha reta. Em sua voracidade canibal, até o tempo é feito de refeição, misturado como um prato de arroz e feijão. Passado e presente e futuro: todos na mesma tigela. O Tropicalismo, para ele, não acabou em 1968, tanto que o espírito do movimento animou e anima seus discos - e esses só começaram a ser editados a partir de 1972. A caixa "Três Tons" reúne os primeiros álbuns de Mautner - "Para iluminar a cidade" (1972), "Jorge Mautner" (1974) e "Mil e uma noites de Bagdá" (1976). O relógio, para eles, gira da mesma maneira que para seu autor. Há tanto o aroma hippie-brazuca dos anos 60 como um sabor de contemporaneidade que colocariam fácil, pelo menos o segundo deles, numa lista de melhores de 2014.
Está ali, vivo, rico, barroco e rebelde, o espírito da Tropicália. Os ingredientes da receita lançada no clássico "Tropicália ou Panis et circensis" estão todos lá: a brasilidade mestiça das tradições pulares (nas referênczias poéticas e sonoras às religiões de matriz africana); a apropriação crítica dos ícones da cultura pop e industrial; as conexões com a alta poesia (no caso, modernista); o humor e, com ele, a crítica social. Mas Mautner imprimia suas marcas a este projeto estético coletivo: o canto que margeia a desafinação, evocando a poesia oral; o violino elétrico que se mete entre o trio básico do pop (baixo, bateria e guitarra) e reproduz, nos arranjos, o mesmo estranhamento que temos ao ouvir a sua voz.
Enredo
A caixa conta uma história - a da domesticação do poeta maldito - e, de quebra, recupera episódios esquecidos da indústria fonográfica nacional. Domesticação porque é esse o processo que se dá, progressivamente, entre o álbum de estreia de Mautner, "Para iluminar a cidade", e o terceiro, "Mil e uma noites de Bagdá".
O primeiro foi gravado ao vivo, no Teatro Opinião, nos dias 27 e 30 de abril de 1972. Com uma forcinha de Gil, o poeta foi contratado pela PolyGram. A gravadora tinha um plano ousado e queria usar Mautner como uma das cobaias: lançaria o selo Pirata, com gravações ao vivo (e, portanto, mais baratas de serem feitas). O valor dos discos viria estampado na capa e seria, em média, a metade do que era cobrado por um LP comum.
O disco foi gravado de maneira tosca, rápida e sem muito planejamento. Caetano assinou um texto na contracapa, para atestar a importância do estreante. E a sorte sorriu para Mautner que, nesse tempo corrido, acabou firmando parceria com Nelson Jacobina. O guitarrista fez os arranjos do LP e iniciou uma parceria com o poeta que duraria até a morte do mesmo, há dois anos.
A estratégia comercial não deu certo e "Para iluminar a cidade" passou em branco, apesar de não lhe faltarem boas canções, como "Olhar bestial" (que evocava Maysa) e "From faraway" (parceria com Caetano, escrita na temporada europeia).
"Jorge Mautner" tentou reparar o equívoco anterior. A gravadora colocou o artista em estúdio e escalou Gil - que já gravava com Mautner - para produzir o álbum. O parceiro Jacobina foi junto e o piano foi confiado a um jovem Roberto Carvalho (futuro parceiro amoroso e musical de Rita Lee, ainda sem o "de" no sobrenome). O resultado é um disco robusto, que encanta da primeira à última faixa.
Nele, aparecem clássicos como "Guzzy muzzy", uma maravilha pop, atualíssima em sua proposta, com refrão surreal e grudento. Outro destaque é "Cinco bombas atômicas", na qual se percebe a mão de Gil e sua então obsessão por Jimi Hendrix. Há, também, "Maracatu atômico", composição mais famosa da dupla Mautner/Jacobina. Chico Science & Nação Zumbi se apropriaram da canção, de forma que a versão original soa estranha, ainda que não inferior.
Mesmo lapidada, a música de Jorge Mautner ainda não era de fácil digestão. A crítica e os programadores gostavam, mas o disco não tocava nas rádios. "Mil e uma noites de Bagdá" foi a tentativa de criar um diamante pop, com "correção" do vocal errante, marca de Mautner como cantor. Não fosse a poesia inconfundível, por vezes não se reconheceria o autor no disco. Não superou seu antecessor, mas tampouco era carente de boas canções, como provam "Rainha do Egito", "Ai, ai, ai" e "Aeroplanos".
Livro
UNIVERSAL
2014, 3 CDs
R$ 59,90
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