Quando Zé Keti (1921 - 1999) compôs "A voz do morro", sucesso de 1955, com gravação de Jorge Goulart para o filme "Rio 40 Graus", falava do samba como uma voz para a "melodia de um Brasil feliz". Embora fosse apenas cinco anos e alguns meses mais novo que o carioca, o recifense José Bezerra da Silva (1927 - 2005), morador do morro do Cantagalo (RJ), só décadas depois atingiu sucesso semelhante, no final dos anos 1970. Era porta-voz já de um outro morro, ainda feliz, mas nem um pouco romantizado.
"Eu não posso cantar o amor quando eu nunca tive. Sou realista", brada o sambista em um dos depoimentos que deu para o filme "Onde a Coruja Dorme". A obra, que estreou no cinema em 2012, chega ao formato DVD, relançada pela Coleção Canal Brasil em parceria com a Rio Filme. Dirigido por Marcia Derraik e Simplício Neto, discute a obra de Bezerra a partir da relação com seus compositores.
Apesar da forte marca pessoal que imprime a seu repertório - o qual poderia facilmente assumir parte da autoria - Bezerra ficou conhecido como o "embaixador do morro" precisamente pela capacidade que teve encontrar seus poetas em tipos populares de morros como o Cantagalo, onde morou, e da Baixada Fluminense, e dar-lhe os devidos créditos.
Depoimentos
"O morro não tem voz. É somente atacado, mas não se defende (?) Como o morro não tem direito a defesa, só tem direito a ouvir... Marginal, safado, ladrão. Então, o que fazem os autores do morro, diz cantando aquilo que queriam dizer falando. E eu sou o porta-voz", anuncia Bezerra na abertura do filme.
Gravado entre 1998 e 2005 o filme faz registros cruciais para a memória de Bezerra da Silva. Além do próprio artista, que faleceu durante o processo, em 2005, estão figuras como o ex-policial Popular P e seu parceiro Moacyr Bombeiro, autores de "Malandragem dá um tempo" e "Vovó D'Angola"; 1000tinho ("Minha Sogra Parece um Sapatão" e "Os direitos do otário"); o carteiro Claudinho Inspiração ("Bicho Feroz" e "Ele Cagueta com o Dedão do Pé").
O tempo de tomada dos registros, ao longo de quase oito anos, se deveu a maneira de financiamento do documentário, via editais, e às diferentes montagens que recebeu, a começar pelo curta "Coruja", lançado em 2001 (e disponível nos extras), ampliado para uma série televisiva, em 2005, que não chegou a ir ao ar devido a restrições de direitos autorais e, em 2011, recebendo o corte final.
Entram ainda Adelzonilton, Roxinho, o bombeiro hidráulico Pinga e o visionário mecânico Tião Miranda. Embora tenham canções de sucesso, nenhum deles vive de música. Associando músicas às cenas do cotidianos de seus criadores, aos encontros e depoimentos de admiradores como Jards Macalé, Marcelo D2, Marcelo Yuka e Jorge Ben, além de fazer justiça, registrando um pouco da história dos compositores, o documentário permite uma outra compreensão da obra de Bezerra.
Malandragem
Irônico, bem humorado ou crítico, os compositores atualizavam o morro carioca, cantando um cotidiano dominado pelo tráfico, a cocaína, as armas, o novo perfil do malandro e a violência policial.
Em cena, além de conversarem sobre as canções - cujas histórias rendem passagens hilárias, a exemplo da explicação a composição de "Minha Sogra Parece um Sapatão", pensada para ser um registro respeitoso, segundo Roxinho, e avacalhada por Tião Miranda e 1000tinho - discutem as gírias do morro, os personagens. Além do malandro, figura tradicionalmente cantada pelos sambistas cariocas, entram na mitologia do morro figuras como o "doutor", o "bicho", o "cabeça-de-área".
"Não tenho papa na língua, não tenho medo da verdade. E quem não gostou, come menos", ironizava Bezerra.
DVD
Onde a coruja dorme
Marcia Derraik e Simplício Neto
Coleção Canal Brasil
2013, 71 minutos
R$ 29,90
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