A crítica Annateresa Fabris fala sobre a incorporação de conceitos da pintura para as câmeras
Conhecida, antes, como arte menor ou até vista como não-arte, hoje, a fotografia conversa de igual para igual com as chamadas belas artes. No entanto, nem sempre o diálogo entre essas linguagens artísticas fluiu de forma amistosa, sendo marcado por rivalidades.
O fato de entrar, de cabeça erguida, no "espaço sagrado do museu, nos meados dos anos 1940, nos Estados Unidos", como constata a professora aposentada da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (Eca-USP), Annateresa Fabris, só veio contribuir para que a fotografia, na contemporaneidade, esteja totalmente em outro patamar. Isso significa ter ficado curada da crise de identidade, no que se refere às questões como autenticidade e reprodução.Em entrevista ao Diário do Nordeste, a pesquisadora que é também curadora, crítica e autora de vários livros, fala sobre a identificação do Surrealismo com a fotografia, as repercussões do movimento "Nova Visão" no Brasil, destacando duas publicações importantes que traduzem bem a incorporação das ideias dessas vanguardas: as revistas "S. Paulo" e "O Cruzeiro". Além de destacar as criações do artista plástico brasileiro Geraldo de Barros (1923-1998).
"O artista chega a uma pintura abstrata, isto é, à arte concreta, depois da prática fotográfica", analisa Annateresa Fabris que, no momento, continua com a pesquisa, que pretende estudar a relação das vanguardas a partir dos anos 1960 até agora. Um dos livros, está quase pronto e trata das relações da "Pop Art" com a fotografia.
E foi esmiuçando essas ligações que a pesquisadora - escreveu livros sobre o tema, um deles "O Desafio do Olhar" (Editora Martins Fontes), que encontra um ponto de convergência entre os movimentos de vanguardas-fotografia-artes visuais e o jornalismo no Brasil.
Nele, a autora cita como exemplos as revistas "S. Paulo", idealizada pelo jornalista e escritor Cassiano Ricardo, em 1935 e "O Cruzeiro" (1926 - 1975). No campo das artes visuais, especificamente, destaca as figuras do artista visual Geraldo de Barros e do escritor Mário de Andrade. Annateresa reconhece o movimento "Nova Visão" como um dos principais propulsores dessa corrente, que acabou desaguando na publicidade. Hoje, principalmente na Alemanha, cresce o movimento da apropriação de imagens já existentes, ressaltando a figura do fotógrafo Joachim Schmid.
Mário de Andrade
"O Brasil insere-se de maneira própria nesse quadro de referências em função das visões de arte e fotografia que imperavam no começo do século XX", argumenta Annateresa Fabris.
Considera um caso "emblemático" o de Mário de Andrade (1893-1945), "por aplicar em sua prática fotográfica recursos que via de maneira muito crítica, no caso das artes visuais. Sua relação tensa com o horizonte tecnológico explicita-se não apenas nas avaliações dicotômicas sobre cinema publicadas na revista Klaxon (1922), mas igualmente no descompasso entre seu gosto visual, tendencialmente realista, e sua percepção das possibilidades inovadoras da câmara fotográfica", defende.
Ao ser indagada sobre como se deu a exploração dessas vanguardas por alguns artistas brasileiros, a professora acrescenta: "No caso do Brasil, Mário de Andrade é realmente uma figura isolada, porque não está divulgando essas imagens que, aliás, nem entram no debate que se faz naquele momento sobre a fotografia. O curioso em Mário de Andrade é que consegue explorar certas possibilidades inovadoras da câmera, embora tivesse uma visão idealista da fotografia e a enxergasse apenas como um documento".
Mas, em vários momentos, o escritor - um dos principais representantes do modernismo brasileiro - consegue ir além dessa percepção mais corriqueira da fotografia, conseguindo trabalhar com novos pontos de vista. A pesquisadora conta que Mário de Andrade tem como fonte de conhecimento, a revista alemã "Der Querschnitt".
Assinante desde 1924 da publicação, encontra diferentes possibilidades de exploração da imagem fotográfica. "Agora, se formos pensar se existe no Brasil uma possibilidade realmente de levar essas conquistas ao público, então, eu lembraria, em primeiro lugar, da revista ´S. Paulo´, onde aparecem fotomontagens e se exploram certas possibilidades novas da fotografia".
Em segundo lugar, a autora cita a revista "O Cruzeiro", sobretudo depois das transformações trazidas pelo fotógrafo francês Jean Manzon, que talvez em termos de difusão das possibilidades de uma nova fotografia, seja um ponto determinante para o estudo da arquiteta e pesquisadora da USP, Helouise Costa.
A professora faz referência à exposição que Helouise Costa realizou no ano passado, no Rio de Janeiro e em São Paulo, enfocando a trajetória da publicação. A mostra pode ajudar a evidenciar, claramente, quais foram as contribuições da revista.
Outro momento importante na construção do diálogo entre fotografia e artes visuais, no cenário brasileiro, pode ser constatado a partir da década de 1940, com a criação do grupo Foto Cine Clube Bandeirantes. "Acabei estudando mais a figura do Geraldo de Barros porque me interessava a ideia do diálogo entre fotografia e artes visuais. O que me chamou a atenção no artista foi o fato de que, depois da prática fotográfica, ele chega à arte concreta. Foi muito interessante Geraldo de Barros extrair da fotografia a possibilidade de uma nova linguagem para as artes plásticas, para a pintura", pontua.
Nova visão
Annateresa Fabris considera fundamental a contribuição da "Nova Visão", movimento não específico da fotografia. Desenvolvido em 1920, com enfoque na Bauhaus, usa a fotografia como uma prática artística autônoma, na tentativa de construir uma relação mais amigável entre fotografia e artes visuais.
No Brasil, o movimento não é muito conhecido. Na realidade, a disposição da professora em se debruçar sobre o tema, é devido à falta de material em português explorando essa relação da fotografia com as vanguardas. "Sobretudo para os estudantes representa uma tentativa de contribuir para que certas questões sejam conhecidas com uma certa profundidade", argumenta.
Ainda com relação aos movimentos de vanguardas, manifestações verificadas no início do século XX, em especial na Europa, atenta para o fato de que "as novas imagens foram depois exploradas no universo da publicidade, sobretudo o Surrealismo e a Nova Visão".
Elas acabaram sendo mais divulgadas através da apropriação da criação e da recriação publicitária do que, propriamente, pelos novos fotógrafos e os novos artistas.
A historiadora de arte paulista volta a fazer referência à revista "O Cruzeiro", admitindo que a "Nova Visão" permite essa difusão das possibilidades da fotografia. Justifica que o movimento não estava preocupado em discutir se a fotografia era ou não arte.
"Eles não queriam saber disso", reitera, completando que o mais importante era mostrar que a fotografia é fonte de uma nova visualização do mundo. "Uma visualidade que não tem nada a ver com as artes tradicionais. Isso é importante para os artistas" .
Para Annateresa Fabris, questionamentos quanto à autenticidade, ou seja, a aura da obra de arte, no caso, a fotografia, bem como a reprodução estão fechados. "São questões totalmente superadas", revela, explicando que, algumas produções mais interessantes da fotografia contemporânea não trabalham nem mais na área da produção fotográfica, mas na apropriação". Um dos representantes é o fotógrafo alemão Joachim Schmid, que se recusa a fotografar até que sejam exploradas todas as possibilidades existentes.
"Portanto, jamais vai fotografar", ri, afirmando ser infinito o universo de imagens já existente. Na Alemanha, esse processo é uma realidade, que vem conquistando seguidores no Brasil, ressaltando os trabalhos de Rosangela Rennó, Cristina Guerra e Helena Martins Costa.
Esses artistas são seguidoras do alemão que, ao invés de produzir imagens, prefere criar significados e novas contextualizações para as pré-existentes. Assim como a fotografia e as artes visuais já se entenderam, no campo do jornalismo, repórteres fotográficos e de textos ainda não encontraram um denominador comum. "O texto é sempre mais importante", brinca a professora, enquanto os repórteres fotográficos tentam mostrar que a foto tem uma leitura própria.
A revista "O Cruzeiro"promoveu uma valorização das imagens. Mas Annateresa Fabris avisa que, no caso da legenda e texto, "ao mudar de contexto, a imagem pode passar a falar totalmente outras coisas".
Surrealismo
Annateresa Fabris reconhece que as vanguardas históricas tiveram, sem dúvida, importância para a fotografia se firmar como arte. Só que, realmente, a relação foi bastante tumultuada porque a fotografia não era vista como arte maior. Nesse sentido, abre exceção para o Surrealismo, que tem uma relação muito particular com a imagem fotográfica, inclusive, com imagens fotográficas anônimas.
"Justamente porque a fotografia pode responder à ideia do encontro inesperado, do acaso", observa. "Acho que entre os movimentos de vanguarda, talvez o Surrealismo tenha sido aquele que mais promoveu a fotografia, porque ela respondia às questões que colocava para as artes visuais".
Nas demais vanguardas, frequentemente, a relação é conflituosa. No caso do Futurismo, os pintores chegam a expulsar a fotografia do âmbito do movimento. Me parece que, a maior parte da historiografia continua privilegiando as chamadas artes maiores, como a pintura e escultura, esquecendo-se das contribuições que a fotografia trouxe para esse diálogo.
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